A Morte Anunciada de Josimo Tavares (poema de Pedro Tierra)

10 de maio de 2018

 

 

 

 

 

 


 

 

  1. Há um dizer antigo

    entre os homens da raça dos rios:

    a morte quando se anuncia,

    devora a sombra do corpo

    e inventa a luz da solidão.

    Você se afastou sob o sol.

    Era 14 de abril.

    Busquei-lhe a sombra

    sobre o chão da rua

    e não havia sombra.

    Ainda busquei tocá-lo.

    Falamos da vida

    e da morte

    (a arma que me matará

    já está na oficina …)

    E você sorria manso

    desde a defendida

    solidão dos místicos.

    Falamos da luta

    e da necessidade de prosseguir

    (os tecelões da morte

    forçam os teares,

    arrematam os fios

    do tecido que te cobrirá …)

 

 

 

 

 

 

 

 


 

  1. Incendiaram nossas casas.

    Destruíram plantações.

    Saquearam celeiros.

    Derrubaram cocais.

    Envenenaram as águas.

    Invadiram povoados.

    Torturaram nossos pais.

    Arrancaram as orelhas dos mortos.

    Atiraram nos rios corpos mutilados

    Derrubaram a cruz que erguemos,

    sinal aceso de nossa memória.

    Cortaram a língua dos nossos irmãos.

    Violaram nossas filhas.

    Assassinaram inválidos.

    Queimaram a sangue e fogo

    a terra que trabalhamos.

    Quem emprestará a voz

    ao idioma do perdão

    e protegerá com súplicas

    o riso dos assassinos?!

    Aniquilaram a raiz da esperança.

    Esgotou-se o tempo de tolerar

    e desatou-se a hora da vingança:

    o primitivo nome da justiça.

 

 

 

 

 

 

 

 


 

  1. Todos sabiam dessa morte.

    A cerca do latifúndio sabia.

    Os pistoleiros, os assalariados da morte,

    a polícia fardada e paisana, o GETAT,

    os garimpeiros, os bêbados, as prostitutas,

    as professorinhas, as beatas,

    as crianças brincando no areal da rua

    sabiam

    Os homens da terra, os posseiros, os saqueados,

    as mulheres alfabetizadas pela dor

    e pela espera

    sabiam.

    O prefeito, o juiz, o delegado, a UDR,

    os fazendeiros, os crápulas

    sabiam.

    As mãos dos assassinos

    poliam as armas.

    A igreja sabia

    e esperava.

    A haste orgulhosa do babaçu

    sabia.

    E dobrava as palmas num lamento

    e multiplicava a ciência dessa morte,

    os passarinhos, o relógio dos templos

    mastigando o comboio da horas

    e não se deteve, a água dos rios

    não se deteve, fluindo irremediável

    a hora dessa morte.

    A pedra dos caminhos

    sabia

    e permaneceu muda,

    o vento sabia

    e anunciava seu gemido todavia indecifrável

    Tuas sandálias sabiam

    e continuaram a caminhar.

    Eu, que nasci votado à alegria

    e vivo a contar o rosário interminável

    dos mortos

    não fiz o verso,

    espada de fúria,

    que cindisse em dois

    o comboio das horas

    e descarrilasse o tempo de tua morte.

    Você sabia.

    E sorria

    apenas.

    Como quem se lava

    para chegar vestido

    de algodão

    e transparência

    à hora da solidão.

    Quem é esse menino negro

    que desafia limites?

    Apenas um homem.

    Sandálias surradas.

    Paciência e indignação.

    Riso alvo.

    Mel noturno.

    Sonho irrecusável.

    Lutou contra cercas.

    Todas as cercas.

    As cercas do medo.

    As cercas do ódio.

    As cercas da terra.

    As cercas da fome.

    As cercas do corpo.

    As cercas do latifúndio.

    Trago na palma da mão

    um punhado de terra

    que te cobriu.

    Está fresca.

    É morena, mas ainda não é livre

    como querias.

    Sei aqui dentro

    que não queres apenas lágrimas.

    Tua terra sobre a mesa

    me diz com seu silêncio agudo

    Meu sangue se

    levantará

    como um rio acorrentado

    e romperá as cercas do mundo.

    Um rio de sangues convocados

    atravessará tua camisa

    e ela será bandeira

    sobre a cabeça dos rebelados.

 

 

 

 

 


Pedro Tierra

Goiânia, maio/86