Aos 97 anos, falece Irmã Alberta, uma lutadora incansável

31 de dezembro de 2018
Por: Brasil de Fato

Religiosa teve uma longa de trajetória de luta junto aos mais excluídos do campo e da cidade no Brasil e na Itália

Publicação original do Brasil de Fato.

“Se pudesse voltar atrás, voltaria a viver e lutar com os sem-terra. A vida com eles resume um pouco a minha vida de missão”, afirma irmã Alberta em entrevista realizada em 2016 à publicação Família Cristã. A história de Irmã Alberta Girardi, que faleceu na madrugada deste domingo (30), está marcada pela resistência e a luta. Nasceu na localidade italiana de Mestre, em Veneza, em 1921, um ano antes do ascenso do fascismo nesse país. Seu pai foi um antifascista declarado, e foi perseguido pelo regime de Benito Mussolini. Durante a Segunda Guerra Mundial, a casa onde morava junto a sua mãe e irmã, foi bombardeada, deixando uma parte dela totalmente em cinzas.

Em 1943 entrou para um convento em Veneza para trabalhar em um orfanato. Em 1951, Irmã Alberta foi enviada a Roma, onde criou, por sugestão do padre jesuíta e crítico cinematográfico Enrico Baragli, uma escola profissionalizante de cinema para jovens órfãs, o Centro Italiano de Adestramento Cinematográfico. Durante os 19 anos em que ficou à frente do centro, Irmã Alberta percorreu as cadeias da Itália procurando filhas de prisioneiros, a quem pudessem servir os estudos.

Chegada ao Brasil

A intenção de Irmã Alberta era ir para o continente africano, um bispo de Roma dissera-lhe que não haviam freiras na Somália, país criado em 1960 a partir das colônias inglesa e italiana nessa região do Chifre da África. No entanto, a Congregação de Don Orione a qual pertencia só lhe permitia ser missionária em países que já contassem com freiras da congregação. Assim, em 1971, Irmã Alberta é enviada ao Brasil, sob plena ditadura militar. Seu primeiro contato com a realidade do país é com os conflitos agrários. Ela foi enviada à região do Bico do Papagaio (antes pertencente ao estado de Goiás, agora de Tocantins), e trabalhou nos municípios de Araguaína e Tocantinópolis, onde denunciou a expulsão e assassinato de posseiros por parte das forças da ditadura em favor da expansão do agronegócio na região. Após quatro anos da criação da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em 1979, Irmã Alberta entra para a organização e trabalha junto com o sacerdote Josimo Moraes Tavares, a quem admirava, em suas palavras, por seu amor aos pobres. Em 1986, o sacerdote foi assassinado na sede da CPT Araguaia-Tocantins, em Imperatriz (MA), a mando de fazendeiros da região. No mesmo dia, a religiosa teve que abandonar a região, pois também havia sido ameaçada de morte. Ela se refugiou em Curralinho, no estado do Pará, onde ficou durante nove anos. Lá trabalhou em um pequeno hospital, e teve que fazer as vezes de vigário, já que a cidade não contava com pároco, atuando na formação de catequistas, trabalhando nas pastorais da família, dos doentes e da juventude.

Em 1997, Irmão Alberta se instala na capital paulista e começa a trabalhar com Fraternidade Povo de Rua, fazendo visitas a moradores em situação de rua. Junto ao Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), ela e seu grupo convidavam os desabrigados a trabalhar na luta pela terra. Ela conta que após o diálogo com eles entregava um bilhete: “Se quiser recuperar um futuro, venha conosco para o campo!”.

Tio Mauro é um dos moradores de rua que recebeu um desses bilhetes. “Eu não queria me misturar com aqueles criadores de casos, delinquentes, ladrões de terras… Peguei o bilhetinho que tinha recebido naquela noite das mãos da Irmã Alberta e o passei a meu irmão. Eu nem o tinha lido. Ele foi a reunião e me pediu que eu também fosse com ele na seguinte. Eu respondi com um não. Ele insistiu tanto que por fim perguntei se ele pararia com aquele aborrecimento se eu fosse. Ele aceitou. Agradeço ao Senhor e a Irmã Alberta por aquela reunião que mudou minha vida. Lembro da Irmã Alberta e da Irmã Nelsy que se colocaram entre nós e a polícia em uma ocupação violenta em 2003. Aquelas fabulosas irmãs diziam que, para nos repelir, a polícia deveria primeiro passar por cima delas. Heroínas! Agora, graças a ela, vivo com minha família na aldeia da reforma agraria dedicada a Tomas Balduíno, cultivo meu campo e confio no futuro dos meus filhos”, contou o agora agricultor ao projeto 100 Nonni.

Em São Paulo, ela também visitou durante muitos anos junto a Pastoral Carcerária diversos presídios. Irmã Alberta recebeu diversos reconhecimentos por sua trajetória de luta e entrega, ela é doutora honoris causa pelo Instituto de Estudos Superiores de São Paulo (ITESP), foi homenageada no Dia Internacional das Mulheres na Câmara Municipal de São Paulo em 2015, e recebeu o prêmio Luta pela Terra em 2015.

Uma das principais homenagens foi dada pelo MST. O Assentamento Comuna da Terra Irmã Alberta, no quilômetro 27 da rodovia Anhanguera, foi batizado em reconhecimento da sua luta junto aos sem terra. Em diálogo com o site do projeto 100 Nonni ela contou uma de suas experiências de ocupação de terra: “Ocupamos um terreno ao lado de uma penitenciária em um subúrbio da Grande São Paulo. Eu, com meu hábito de freira, estava diante da polícia ao lado de um advogado chamado Bruno. Um capitão da polícia me perguntou o que estava fazendo naquele lugar. ‘O meu dever’, respondi. Eu também cumpro meu dever, ele retrucou. Chovia muito. Eram as duas da madrugada. Os policiais estão acostumados a enfrentar a violência com violência. Uma mãe tinha duas crianças no colo. Peguei uma delas e avancei! Um policial me fez cair com a criancinha. Nos empurravam até o asfalto e depois iam embora. Nós voltávamos imediatamente. Era terra livre, do governo, mas os guardas da prisão haviam se apossado dela para criar ovelhas e cavalos. Diziam que a terra era deles. Chamaram de novo a Polícia Militar que nos empurrou pela segunda vez. Então voltamos no dia seguinte com o dobro de famílias. Começamos a construir as barracas típicas dos sem-terra, usando grandes sacos de plástico preto sobre uma armação de madeira, com redes para dormir. Resistimos, recuamos, voltamos outras vezes… Nunca desistimos. Por fim conseguimos obter a residência provisória. Hoje, muitos anos depois, lá pode ser encontrado um assentamento com 70 famílias, 400 pessoas, com lotes de 3 a 4 hectares para cada núcleo familiar, morando em casas de alvenaria feitas no regime de mutirão. Cultivam acerola, caqui, abacate, laranjas, bananas… Aqueles camponeses são todos meus irmãos”.