A importância e o significado do conceito de Soberania e seus desdobramentos
Autor: Cristóvão Feil
Os manuais de Ciência Política informam que o conceito de Soberania trata e informa sobre o poder de mando em uma dada sociedade humana. Soberania é o poder supremo, exclusivo e não derivado. A soberania pretende ser a racionalização jurídica do poder, no sentido da transformação da força em poder legítimo, do poder de fato em poder de direito.
A expressão “soberania” aparece na história da civilização lá pelo final do século 16, juntamente com o termo “Estado”. Um não vive sem o outro. O Estado soberano representa e engloba o poder estatal, que reúne numa única instância o monopólio da força legítima num determinado território e sobre uma determinada população, e com isso realiza no Estado a máxima unidade e coesão política.
A força do Estado, que se manifesta ora pela coerção (através do aparato militar e policial), ora pelo consenso (através das instituições da sociedade política e/ou civil, como mídia, Universidade, partidos, sindicatos, escola, igrejas/credos, etc.) tem como objetivo primordial manter a ordem, a coesão e a paz no interior do terrítório nacional, e preparar-se para o conflito/guerra com os estrangeiros no âmbito internacional.
O conflito nem sempre se revela como uma guerra aberta e sangrenta, mas pode se expressar como uma guerra fria, controlada, guerra de dissuasão, corrida armamentista para impressionar o oponente, guerra científico-tecnológica, etc.
Depois da Segunda Guerra Mundial, quando ocorreu um conflito aberto e sangrento, tivemos a chamada Guerra Fria, entre o Ocidente capitalista versus o mundo soviético e seus satélites no Leste da Europa.
O período da denominada Guerra Fria começa em 1945, no final da Segunda Guerra, e termina com a queda do muro de Berlim e o fim da União Soviética, entre os anos de 1989 e 1991.
Foi um período marcado pelo precário equilíbrio da paz mundial, um conflito “frio” entre os dois polos de poder militar mundial, os Estados Unidos e a União Soviética, e situações limite de quase guerra aberta, com muitas escaramuças nos bastidores geopolíticos através de espionagem, contra-espionagem, corrida espacial, corrida armamentista, difusão entre os blocos da tecnologia da bomba nuclear, áreas de disputa com o incentivo de conquistas chamadas de teoria do dominó, onde uma parte exigia ações fortes da outra parte, tendo em vista áreas de influência em territórios estratégicos para uma hipotética ação militar, bem como conflitos de guerra aberta e sangrenta como na Coreia, no Vietnan e sudeste asiático, e nos territórios petrolíferos do mundo árabe.
Mas voltemos um pouco no tempo, agora com a intenção de entendermos os primórdios do conceito de Soberania, assim como do conceito de Estado. Quem conhece um pouco da Revolução Francesa, considerada o modelo mais acabado de mudança da ordem política que sai de um regime de Monarquia absolutista para um regime de República representativa, onde a força política migra para a burguesia, sabe que um dos últimos reis da França cometeu a ousadia de afirmar que “o Estado sou eu”. Isto significava que havia um confusão entre Estado e a figura do próprio rei. E na prática funcionava assim mesmo. Mas a revolução que se pretendeu democrática e de hegemonia burguesa desmonta este entendimento e inclusive determina o corte da cabeça do rei na guilhotina.
O fim das monarquias absolutistas representou um avanço para o tema da Soberania. Já não estávamos tratando a Soberania como o poder unipessoal e intransferível do monarca, mas algo que fosse conduzido com mais participação e democracia, algo que fosse mais abstrato, mais impessoal e com mais formalidade jurídica. Algo que atribuísse ao povo uma vontade sintética e unitária.
Mas observem que esses conceitos, tanto de Estado quanto de Soberania, são dinâmicos, sempre sofrem modificações ao longo das épocas histórico-políticas. O que se discute hoje é o tensionamento entre Soberania e Constitucionalismo. O contexto social de nossos dias envolve uma pluralidade política crescente, há grupos políticos, instituições inteiras (como o Poder Judiciário no Brasil) classes e frações de classes que disputam em tempo integral para influenciar e hegemonizar o poder político das Nações, seja no Brasil, seja nos países europeus, seja na Ásia e América do Norte. Como ilustração podemos lembrar a força política das Forças Armadas nos Estados Unidos, que consegue se apropriar em cerca de 40% do Orçamento público do país em favor dos interesses do chamado complexo industrial-militar que orienta praticamente a integralidade da política externa estadunidense, sempre voltada para o domínio da força militar, de persuasão armada e nuclear, de instalação de bases militares espalhadas pelo mundo todo, e por constante vigilância através de uma rede de espionagem invasiva (física e eletrônicamente) igualmente mundial.
O poder soberano é objeto de permanente disputa entre as classes sociais e as instituições da sociedade. Pode-se afirmar que o poder desliza para um lado ou outro, conforme a conjuntura econômico-social do país em exame, ou mesmo das influências geopolíticas mundiais do momento. A ditadura militar que se inicia no Brasil em março de 1964 foi possível graças a uma conjuntura internacional favorável ao autoritarismo, e claro, graças também às condições de fragilidade interna do governo democrático de Goulart, abalado por investidas fortes da mídia, por financiamento externo de grupos civis golpistas por parte do Departamento de Estado dos EUA, e outros fatores que potencializaram o golpe civil-militar.
Já o constitucionalismo resulta de conquistas materializadas nas constituições escritas, com normas hierarquicamente superiores às leis ordinárias, tornadas eficazes e efetivas por cortes judiciárias neutras e apolíticas (em tese).
Mas observem que mesmo o constitucionalismo apresenta fissuras e variações na sua aplicação.
Hoje, no Brasil a Constituição é desrespeitada até por membros cativos do Poder Judiciário. Depois do golpe de Estado de 2016, que derrubou a presidenta legitimamente eleita, o Judiciário e o Ministério Público, que eram para serem zeladores leais da Constituição, se arvoraram como árbitros do desvio da regra e da normalidade. Sendo assim, podemos afirmar que o Brasil vive um Estado de exceção, que suspendeu o ordenamento jurídico com o intuito de manter a unidade e a coesão política, agora comandado por um grupo que assaltou o poder da República de forma impositiva e antidemocrática.
Nos próximos artigos vamos voltar ao tema da Soberania, que pode ser desdobrada em várias outras expressões da constante busca por direitos e garantias individuais. O tema é vasto e não se esgota aqui. A sociedade plural e democrática que buscamos deve lutar também por Soberania Nacional, Soberania Alimentar, Soberania Tecnológica, Soberania Popular, etc. Se o termo Soberania antes expressava apenas o poder supremo do monarca unipessoal e autocrático, hoje deve ser objeto de apropriação pelas classes populares como conquistas nas distintas instâncias da luta social e política.
Em 07 de agosto, 2018
Cristóvão Feil, sociólogo