A invenção das tradições no Rio Grande do Sul


O conservadorismo no Rio Grande do Sul está afixado em um vasto painel mítico representado pela revolta farroupilha de 1835/1845. Nada como uma epopeia guerreira para ser tomada como fonte de identidades e depósito de um imaginário mitológico plástico a ideologizações conservadoras e tradicionalistas. Não importa que esse culto passadista ocorra sobre um fato histórico que resultou em uma humilhante derrota dos farrapos que lutaram contra o Império dos Bragança. Para o mito não importam os fatos.

 

“O mito político – como afirma o historiador Raoul Girardet -, é fabulação, deformação ou interpretação objetivamente recusável do real”. A derrota farrapa de 1845, antecedida por traições memoráveis, seguidas de matança de guerreiros negros, aos quais se prometiam abolição do trabalho escravo, seguida de um tratado – talvez único no mundo – que premiava os comandantes derrotados com remunerações em dinheiro e consequente anistia irrestrita, tudo isso, não conta para o constructo da mitologia farrapa.

 

Resta um imaginário fértil que nega a verdade factual em nome de uma autoimagem gloriosa e edificante. A partir daí, sobre esse alicerce que mescla mito e realidade, verdade (muito rara) e mentira, sonho e vigília, se erguem sistemas de discursos particulares. Sistemas esses tão afastados da racionalidade analítica cartesiana (decomposição em partes distintas/divisão sucessiva/numeração ordenada) quanto as galáxias celestes. O mito é construído com os mesmos tijolos e a mesma argamassa do sonho, se é que podemos usar essa metáfora. A dinâmica de imagens é a mesma, a sucessão de seus encadeamentos, as derivações de sentido e o resultado que acalenta, identifica e mobiliza são os mesmos.

 

Ideologia como ocultação da essência

 

Tudo isso constitui as camadas ilusórias que formam a substância da ideologia. A esquerda não sabe fazer ideologia. Ideologia é enganação. É aparência, magia, misticismo, mitologia, ideologia: a máscara plástica do real. Ocultação da essência. Tudo para encobrir a realidade com o véu diáfano da fantasia. O gauchismo é ideologia, ele é constituído de camadas de misticismo, mitologias e falsas consciências. Por que a direita se mantém no poder? Ora, por que está assentada na legitimidade destas falsas ilusões. O que é o sujeito que está desempregado e vota no tucanato? O bombachudo urbano desempregado que projeta seus sonhos no latifúndio e classifica os sem-terra como vadios e preguiçosos?

 

Depois do advento da política de massas, talvez depois da Comuna de Paris (1872), os estudiosos se deram conta da presença de elementos irracionais na manutenção da estrutura de classes e da ordem social. A intelectualidade humana nem sempre é considerada quando se tratam de decisões de natureza política. Assim como o indivíduo não tem pleno domínio consciente da sua racionalidade, também as decisões coletivas de massa (e do senso comum) igualmente remetem a resultados que estão muito longe do cálculo racional e objetivo.

 

A luta permanente e incessante do velho liberalismo (desde pelo menos as revoltas mundiais de 1848) sempre foi buscar a clivagem, a fresta, o espaço lacunar por onde possam introduzir a “invenção das tradições”, como forma de idealizar um projeto que mantenha a coesão social e afaste os riscos do republicanismo e do socialismo. Hoje, a própria democracia, que já teve status de “valor universal”, perde a sua funcionalidade entre os setores proprietários da sociedade de classes, não só no Brasil, mas em quase todo o mundo. O capital financeiro, a grande mídia e as elites nacionais conspiram insanamente contra os valores democráticos.

 

O mito, por ser despolitizante, opera uma ponte entre o passado e o futuro, sem tocar no presente, porque aí habita a política, outro valor cada vez mais desmoralizado pela elites.

 

Quem tem medo de Floriano Cambará?

 

A história do Rio Grande foi contada por um sem-número de historiadores, cientistas sociais, etnógrafos, antropólogos, etc., muitos autênticos, alguns impostores. Mas, é na literatura vertida em arte, pela imaginação poética de Érico Veríssimo (1905-1975), que ela encontra o seu relevo mais expressivo. A historiografia é feita de memória e esquecimento, a memória dos vencedores e o esquecimento dos vencidos. Érico não esqueceu de ninguém, nos mais de dois séculos do mosaico humano rio-grandense que narrou.

Floriano Cambará é um personagem do escritor brasileiro, que, num exercício de metalinguagem, faz de Floriano o autor do romance “O tempo e o vento”, que abarca o período de 1745 à década de 1950. É um segundo eu do escritor, um alter ego, que ele dá vida nas mais de duas mil páginas da homérica narrativa ficcional sobre o Rio Grande do Sul – um Estado dividido em dois, social e economicamente; a metade Norte, onde o módulo rural é minifundiário, tem padrões socioeconômicos relativamente elevados; a metade Sul, onde a matriz produtiva é o latifúndio, o desenvolvimento humano é degradado, não houve industrialização e as poucas cidades são antigas, bonitas e decadentes.

O romance é um vasto e febricitante painel, em alto e baixo relêvo, das humanidades e desumanidades que o solo meridional experimentou na sua curta e densa história. “O tempo e o vento” não é uma narrativa plana e lisa, é sim uma narrativa com História (simbolizada pelo Tempo, pelas mulheres fortes, homens nem tanto, famílias, lutas pelo poder e pela vida) e com Natureza (simbolizada pelo Vento, pelas coxilhas, pelo pampa e pela terra). Terra essa que começa, pouco a pouco, a sair da natureza para entrar na história, através da apropriação privada, a estância, o latifúndio, o trabalho escravo, o genocídio dos autóctones, os arames, o gado chimarrão, o charque, as vilas, as revoltas armadas, a cidade de Santa Fé e o mítico Sobrado – o cenário privilegiado da intrincada trama de Érico.

Os trovões da razão crítica

 

Floriano Cambará é um crítico afiado do tradicionalismo gaucheiro, bem como outros personagens do grande romance. É ilustrativo o diálogo áspero que travam Terêncio, o latifundiário, de um lado, e Floriano, o escritor, de outro.

“É estranho – observa Terêncio – que logo um escritor aí esteja a desprezar, a atacar os símbolos, as metáforas, os mitos. Como seria possível gerarem-se e manterem-se civilizações sem o uso de símbolos? Como poderia o homem transmitir a cultura aos seus descendentes, através dos séculos, sem os símbolos?”

“Estou absolutamente de acordo com o senhor – replica Floriano. – Como poderia haver arte literária sem símbolos? Como poderia existir arte poética sem palavras, símbolos ou metáforas? Mas quero que me entendam… A linguagem figurada pode ser perfeitamente inocente, além de bela e necessária. Mas o perigo começa quando o povo toma ao pé da letra, como verdades absolutas, os símbolos e metáforas políticas e sociais engendrados de acordo com o interesse imediato de quem os emprega.”

Lá fora, para sugerir tensão à narrativa, uma noite chuvosa e com trovoadas estremece molhando Santa Fé. Parece que os elementos celestes querem intervir na peleia verbal.

 

“Terêncio parece estonteado.

– Mas é assustador! – exclama. – Os senhores destroem tudo, não acreditam em nada e em ninguém! Se nós os gaúchos jogamos fora os nossos mitos, que é que sobra?

Floriano olha para o estancieiro e diz tranquilamente:

– Sobra o Rio Grande, doutor. O Rio Grande sem máscara. O Rio Grande sem belas mentiras. O Rio Grande autêntico. Acho que à nossa coragem física de guerreiros devemos acrescentar a coragem moral de enfrentar a realidade.

– Mas o que é que o senhor chama de realidade?

– O que somos, o que temos. E não vejo por que tudo isso deva ser necessariamente menos nobre, menos belo ou menos bom que essas fantasias saudosistas do gauchismo com que procuramos nos iludir e impressionar os outros”, completou Floriano Cambará.

Roland Barthes se estivesse ali no sobrado de Santa Fé, naquela noite barulhenta e molhada, certamente, comentaria sobre o debate do mito gauchista:

 

“A sua clareza é eufórica!”

 

Em 20 de setembro, 2018.

 

Cristóvão Feil

Sociólogo