A mão invisível do Estado: ou de como o mercado não vive sem o apoio estatal


Adam Smith

Há mais de dois séculos e meio, o economista Adam Smith criou a figura da “mão invisível do mercado”. Trata-se evidentemente de uma hipérbole, um exagero para melhor imaginar o mercado abstrato como o grande regulador natural do capitalismo e, ao mesmo tempo, limitar o papel do Estado como o criador e mantenedor da infraestrutura básica (educação, saúde, vias de transportes) e a segurança da propriedade privada.

 

Keynes e Polanyi

Já no século 20 tivemos dois grandes estudiosos da economia capitalista que desmentiram essa capacidade mágica do mercado, nos termos de Adam Smith. Um deles foi o antropólogo econômico, vamos chamá-lo assim, Karl Polanyi. O segundo foi o economista britânico John Maynard Keynes. Polanyi afirma em seus estudos que a oposição entre Estado e mercado é um mito, e que o mercado sempre foi moldado e fomentado pelo Estado, desde os seus primórdios. Keynes vai mais adiante: garante que os mercados capitalistas necessitam de constante regulação por parte do Estado, devido às instabilidades inerentes ao sistema produtor de mercadorias. Para ele, o investimento privado é sempre inconstante (e comumente ausente) e necessita de investimento público para estabilizar o mercado, estimular a demanda de consumo e regular a economia como um todo.

 

Joseph Schumpeter

Na sequência, Joseph Schumpeter e seus economistas afiliados propugnam por ações estatais mais agressivas nos gastos públicos (em oposição à metáfora keynesiana do “useless government”) visando investir em áreas que aumentem a produtividade do País, privilegiando a inovação, o investimento público em pesquisa/desenvolvimento (P&D), infraestrutura, capacitação profissional e fomento direto a empresas e tecnologias portadoras de futuro.

Neste ponto o capitalismo e as ideologias que o sustentam começa a intuir acerca do mito da “mão invisível” smithniana. Primeiro, entende e admite que o “mão invisível” do mercado não existe. O mercado é definitivamente maneta. Segundo, que a metáfora da “mão invisível” deve ser usada em outra situação, qual seja, no Estado. Significa dizer que o Estado deve, sim, regular e fomentar os mercados para que se comportem conforme padrões menos inconstantes, evitando crises e buscando metas de desenvolvimento produtivo crescentes. Mas, atenção! Não deve ser divulgado que o Estado está investindo diretamente nos agentes privados da economia. A “mão invisível” do Estado (e não mais do mercado) deve continuar invisível, caso contrário pode-se perder a disputa ideológica na guerra fria dos debates acadêmicos, midiáticos e político-partidários.

 

A mão escondida do Estado

Lembro apenas um singular exemplo desta cuidadosa ocultação do papel estratégico do Estado no fomento desenvolvimentista dos países das economias centrais: em um documentário de 2011, “Something Ventured, Something Gained”, que dura quase 90 minutos, e fala o tempo inteiro das maravilhas românticas e miraculosas do “livre mercado” no Vale do Silício californiano, o papel do Estado é completamente omitido.

Observem que não se trata apenas de negar a existência da mão generosa do Estado, mas de erguer biombos ideológicos baseados em fantasias verossímeis e românticas tais como as chamadas “empresas de garagem”. Assim, seguindo esse roteiro imaginoso e criativo, a Apple, que dias atrás foi avaliada em um trilhão de dólares (é a primeira vez que uma empresa privada chega no patamar do trilhão, vale mais que todas as companhias listadas na Bovespa) teria como berço uma singela garagem da então modesta cidade interiorana de Cupertino, no estado da Califórnia (EUA). O mesmo pode-se dizer das gigantes de tecnologia e inovação como a HP, Intel, Google, Oracle (cujo principal cliente é a CIA), Microsoft, Fairchild Semiconductor (cujo principal cliente é o Exército dos EUA), Adobe, Dell, etc. Os casos acima se referem aos EUA, mas as demais experiências desenvolvimentistas mundo afora, na Coreia do Sul, no Sudeste asiático, etc., sempre contam com parcelas importantes do orçamento público, seja na forma direta do crédito público, seja na forma indireta, através de Universidades, laboratórios de pesquisa, agências de fomento, e instituições mistas de inovação.

 

O Estado desenvolvimentista

Apesar dos ocultamentos ideológicos (em franca cooperação com as mídias locais e internacionais) o Estado desenvolvimentista (um palavrão em certos círculos do neoliberalismo ortodoxo) é um dado da realidade do modo de produção de mercadorias. O Estado como indutor não somente da demanda keynesiana, mas sobretudo do próprio processo de industrialização. Os exemplos são múltiplos e variados, a começar pela Alemanha, que já no século 19 fomentava – através do Estado – um sistema integrado entre educação pública e formação tecnológica. Os EUA alcançou status de potência econômica graças aos incentivos estatais à produção em massa e à pesquisa/desenvolvimento (P&D). Na década de 1970, o Japão investia 2,5% do PIB em P&D. A União Soviética investia cerca de 4% do PIB em P&D. Apesar de serem somas muito expressivas, em ambos os casos, o Japão logrou crescer mais que a URSS. Motivo: enquanto a URSS investia de forma mais concentrada no setor militar e espacial, o Japão horizontalizou os investimentos em quase todas as cadeias econômico-produtivas, integrando Universidades, empresas públicas e privadas, importação de tecnologia, desenvolvimento local de novas tecnologias e estímulo à simbiose industrial entre usuário final e produtores-desenvolvedores. Em ambos os casos, a interferência do Estado na economia foi inegável. Surtiu mais efeitos positivos horizontalizados no Japão do que na URSS, por que nesta não houve integração entre Estado e consumidor final, já que os incentivos reduziam-se à defesa e à corrida espacial. A China experimenta altas taxas de crescimento continuados por que entendeu de não cometer o mesmo erro da URSS. Os chineses desenvolvem conhecimento em massa e P&D, estimulado pelo Estado, mas logram distribuir seus benefícios para o conjunto da população. A China somente entrou para a OMC quando sentiu que estava preparada para competir no tabuleiro do comércio mundial, ficando assim, desobrigada de obedecer à ditadura do FMI e suas regras inspiradas no interesse do capital financeiro hegemônico (regras não-inclusivas e anti-desenvolvimentistas).

Socialização de riscos e privatização de benefícios

O Estado desenvolvimentista deve ser um objetivo político-social irrenunciável de governos comprometidos com a justiça social e o crescimento produtivo sustentável e igualitário. Mas atenção, é necessário combater os desvios inerentes à luta de interesses de classes e frações de classe que conduzem à gravíssima deformidade de socializar riscos e privatizar benefícios. No Brasil, essa deformidade é visível em vários setores da economia, quase sempre em favor do capital financeiro.

Outra grande hipertrofia macroeconômica que pode se revelar em uma armadilha para barrar o sucesso do desenvolvimentismo fomentado pelas políticas públicas é aquele que resulta de “gastos inúteis” (alusão a Keynes). Refiro-me ao não-diálogo entre as despesas fiscais keynesianas e os investimentos schumpeterianos em inovação. O caso da Itália, lembrado pela economista Mariana Mazzucato, é exemplar: em 2011, o país tinha uma alta relação dívida/PIB, de 120%. O déficit era de 4%, considerado moderado. A Itália gastava pouco, mas de forma errada. “Porém – escreve Mazzucato – a falta de investimento em P&D para impulsionar a produtividade e o desenvolvimento de capital humano fez com que a sua taxa de crescimento ficasse abaixo da taxa de juros paga sobre a dívida, e em consequência o numerador da relação dívida/PIB ficou maior que o denominador”.

De novo, outro alerta, a política de inovação aqui propugnada também apresenta seus riscos e igualmente gera mitos e ineficácias. Tal política pública exige confiança do agente/investidor privado, para tanto, os governos devem ser portadores de legitimidade, claro, conquistada através do voto popular em situação de normalidade jurídica, pleno funcionamento das instituições e credibilidade pública da burocracia de Estado. Sem esquecer a necessária Soberania nacional, que hoje está soçobrando a olhos vistos. Ora, sabemos que no presente momento, em especial depois do golpe de Estado de 2016, o Brasil está muito longe de poder cumprir com esses pré-requisitos para oferecer confiança jurídico-institucional a quem quer que seja, tanto internamente, quanto sobretudo no Exterior.

O Brasil está preso a um pântano artificial que trava nosso desenvolvimento, mas ainda assim cumpre-nos oferecer alguns luzes (de lanterna ou candeeiro) para que em breve prossigamos na justa luta pela soberania e a democracia substantiva.

Em 14 de agosto, 2018.

 

Cristóvão Feil, sociólogo