Artigo | Hegel, a pandemia e o colapso do sistema

4 de maio de 2020

Cristóvao Feil*

Hegel tem uma sentença que me parece definitiva para servir de legenda ao atual cenário de crise estrutural do capitalismo: Weltgeschichte ist Weltgerichte, a história do mundo é o juízo do mundo.

Por isso, cabe recordá-lo, em 1806: “Encontramo-nos num período importante, numa época de fermentação, na qual o espírito está dando um salto, saindo de sua forma anterior e assumindo uma forma nova. Toda a massa de representações e conceitos existentes até hoje, os nexos do mundo, dissolveram-se e se fundem como num sonho. Cumpre à filosofia, antes de mais nada, reconhecer e saudar essa aparição, embora haja quem se oponha inutilmente a ela e se aferre ao caduco”.

Blaise Pascal dizia que “a verdadeira filosofia zomba da filosofia”. É o que sempre orientou o pensamento hegeliano e o que manda que façamos no presente momento de erosão de paradigmas e de derretimento de conceitos.

Segundo o estudioso de Hegel, Jean Hyppolite, o professor alemão se preocupou mais com os problemas religiosos e históricos do que com problemas propriamente filosóficos. Hegel, diz Hyppolite, permanece bem próximo do concreto, e o concreto para ele é a vida dos povos, o espírito do judaísmo e do cristianismo. Somente recorre aos filósofos, particularmente Kant e os antigos, para atacar melhor e diretamente o seu objeto, a vida humana tal qual ela se lhe apresenta na história, as preocupações de Hegel são cada vez mais de ordem prática.

Ele estuda as religiões e passa a denominar o cristianismo de uma “religião privada” em oposição à “religião de um povo”, que seria própria da velha mitologia politeísta grega. Para Hegel, a religião antiga, mitológica, é a religião da cidade, uma intuição que o povo tem de sua realidade absoluta. Mas não é a religião admitida pelo moralismo kantiano, que postula a religião como puro ideal moral. É a religião como espírito supra-individual de um povo – o Volksgeist. Uma realidade histórica que ultrapassa infinitamente o indivíduo, mas que lhe permite encontrar-se a si mesmo sob uma forma objetiva – para bem além da estreita idealização moral e subjetiva de Kant.

Hegel diz que o indivíduo – reduzido a si mesmo – é uma abstração. Eis porque, observa Hyppolite, a unidade orgânica verdadeira, o universo concreto, para Hegel, será o povo. O individualismo, para ele, é produto do cristianismo, que ele chamará de “religião privada”. A vida pública cidadã da velha Grécia era estimulada pelo politeísmo, pelos mitos, pelas cerimônias que acabaram formando o que ele chama do “espírito de um povo”.

O homem livre é o homem que participa, diz Hegel. O indivíduo não poderia realizar-se em sua plenitude senão participando do que o ultrapassa e o exprime ao mesmo tempo, de uma família, de uma cultura, de um povo. É somente assim que ele é livre – explica o professor Jean Hyppolite acerca do alemão.

“A supressão da religião pagã pela religião cristã é uma das revoluções mais surpreendentes – conclui Hegel – , e a procura das suas causas deve ocupar mais particularmente o filósofo da história”.

O cidadão antigo era livre porque precisamente ele não opunha a sua vida privada à sua vida pública, ele pertencia à cidade. A cidade não era – como Estado – um poder estranho que o constrangesse. “Como homem livre, obedecia a leis que ele próprio fizera. Sacrificava a sua propriedade, as suas paixões, a sua vida, por uma realidade que era a sua” (Fenomenologia).

A mitologia religiosa antiga, pré-cristã, era a religião da cidade-cidadania, que atribuía aos seus deuses o seu nascimento, o seu desenvolvimento, e suas vitórias. Ao contrário do cristianismo, a religião pagã não era uma fuga para um além, era uma religião da vivência cidadã, participativa. A religião supra-individual – para além do indivíduo – da liberdade. Não havia, portanto, uma oposição entre indivíduo e Estado. Hegel dizia que o cidadão punha a parte eterna de si mesmo em sua cidade e não no além, como o cristianismo.

O Direito romano, para ele, já representa a substituição da vida ética da cidade, que aos poucos desaparece. A imagem do Estado, como um produto de sua própria atividade, desapareceu da alma do cidadão. Este se sente apenas a peça de uma engrenagem que já não lhe pertence ou domina. Este atomismo social prepara o caminho para o advento do cristianismo, onde o Direito é o triunfo do individualismo, mas o que é reconhecido neste homem é a pessoa abstrata, a máscara do homem vivo e concreto. A passividade do homem – diz Hyppolite – vem acompanhada dessa exigência cujo têrmo era o além.

É dessa decomposição da velha cidade que aparece a consciência infeliz, e o cristianismo, para Hegel, é uma expressão disso.

A religião cristã é uma teologia positiva, o homem só se submete a ela porque teme a Deus, um Deus que está muito além dele e do qual ele é escravo.

Mais adiante, Hegel diz que a “nossa religião [a cristã] quer elevar os homens à categoria de cidadãos do céu, cujo olhar está sempre voltado para cima, e com isso se tornam estranhos aos sentimentos humanos”.

Agora, o mundo da vida real e o do pensamento são diferentes, há um abismo entre a moral privada e o ethos – os costumes existentes.

A velha democracia grega está ultrapassada, porque no mundo moderno ela corre o risco de não ser mais que uma dissolução do Estado nos interêsses privados. Os governos já não são mais a expressão universal de todos, mas aparecem como tendo uma existência independente, um balcão de negócios do capital.

Com a crise sanitária mundial, pandemia, seguida de uma grave e profunda reviravolta sistêmica, o mundo não só dá um salto, como diz o mestre, mas dá cambalhotas, exigindo duas coisas de imediato: conceito, ferramentas para o pensamento, e ação. Hegel dizia que “se a realidade é inconcebível, então cumpre-nos forjar conceitos inconcebíveis”.

O inconcebível no conceito é a antinomia, o encontro da contradição viva e aguda. Portanto, estamos dropando a onda do inconcebível, vivendo a história, o destino e o julgamento do mundo.
O destino é a consciência de si mesmo, “mas como de um inimigo”, é aquilo que o homem é, mas que lhe aparece como se tendo tornado estranho.

A ação política “perturba a quietude do ser”, onde “só as pedras são inocentes, porque elas não agem, mas o homem deve agir”.

Inspirado em Hegel, Karel Kosik pergunta e responde: o que o homem realiza na história? Na história o homem realiza a si mesmo. Não apenas o homem não sabe quem é, antes da história e independente da história, mas só na história o homem existe. O homem se realiza, isto é, se humaniza na história.

Pela primeira vez na história da humanidade, um modelo de produção e reprodução da vida social cresce, se desenvolve e entra em colapso num intervalo de tempo que cabe na vida de um indivíduo.

Um sujeito que tenha 60 anos hoje, conseguiu ver o início da hipertrofia dinheirista do capital, depois assistiu a Thatcher dizer que “não existe essa coisa chamada sociedade”, depois, em 2008, olha assombrado para bancos e tradicionais montadoras de automóveis (uma delas chegou a dar nome à sociedade de consumo do século 20) recebendo socorro monetário do outrora tão desprezado Estado. Hoje, a pandemia unifica a humanidade e paralisa o sistemão.

Na história se realiza o homem, lembra Kosik, e somente o homem. A mercadoria, o dinheiro, são criações culturais humanas, às vezes a ideologia faz com que nos esqueçamos disso, que é elementar, porque tão ocultado por camadas e mais camadas de feitiçarias, passando a ser quase entidades naturais.

Portanto, não é a história que é trágica, mas o trágico está na história – como lembra Kosik. Não é absurda, mas é o absurdo que nasce da história. Não é cruel, mas as crueldades são cometidas na história. Não é ridícula, mas as comédias se encontram na história.

O breve ciclo de sessenta anos que ora assistimos se fechar, no palco da história, teve muito de tudo isso: tragédia, absurdo, crueldade e comédia.

Coisas da vida.

Em 2 de maio, 2020

 

(*) Sociólogo