De Londres a Pinhal, o fel que nos rodeia


Dias atrás circulou pelas redes sociais com grande repercussão um vídeo onde uma senhora inglesa insultava um rapaz brasileiro nas ruas de Londres. Motivo: ela sentiu-se ofendida pelo fato de o rapaz estar falando português em alto e bom som. Para esta inglesa, o brasileiro deveria andar calado ou apenas sussurrar o idioma de seu país.

 

O vídeo causou espanto no Brasil. Mas não deveria. Quem conhece um pouco a história recente da Europa não irá estranhar essa reação desproporcional, neurótica e mesmo racista da senhora inglesa.

 

A senhora apenas manifesta o seu etnocentrismo exacerbado. E o etnocentrismo, como se sabe, é a tendência de quem considera o seu grupo étnico ou nacional superior aos demais. Os inferiores, os subalternos devem conhecer o seu lugar e portar-se como tal, discretos, respeitosos e humildes.

 

Esse comportamento impertinente e autoritário dos que se consideram superiores é fenômeno que não se reduz às relações entre os brancos do Hemisfério Norte e a mescla étnica dos que nasceram no Hemisfério Sul. No Brasil mesmo, a onda conservadora dos últimos anos, e que se agudiza com a eleição da extrema direita no poder, igualmente se observam comportamentos de ódio entre ricos (ou os que se classificam como ricos) e pobres, entre brancos e mulatos, entre os que se julgam cultos e a massa ignara.      

 

Ocorre que muitas pessoas, desconhecendo a história recente da Europa, estimam que a intolerância generalizada que se observa no Brasil é fenômeno próprio do Brasil, uma jabuticaba bem brasileira. Errado. A própria senhora do vídeo inglês demonstra o quanto o ódio ao diverso está disseminado no mundo todo.

 

Não nos esqueçamos que o nazifascismo é fenômeno político e social de natureza europeia, justamente aqueles que, em se considerando social e culturalmente superiores, foram sujeitos conscientes do ódio organizado que se denominou Segunda Guerra Mundial com seus campos de concentração, perseguição e eliminação de grupos étnicos e políticos indesejáveis, bem como a maior mortandade de seres humanos em um só episódio bélico, ainda que prolongado e duradouro. 

 

Em 1911, a Europa toda fervia de ódio, com vetores em todas as direções, estimulado por nacionalismos exaltados e uma febril preparação para o pior: a Primeira Guerra Mundial. Neste mesmo ano de 1911, em discurso no parlamento alemão, o socialista August Bebel, previu a iminência da guerra e a catástrofe no continente. Foi quando ele proferiu a célebre frase: “O Götterdammerung [crepúsculo dos deuses] do mundo burguês está se aproximando”. De fato, os próximos trinta anos foram de grandes conflitos, pontuados por duas Guerras Mundiais como marcos inapagáveis da selvageria e brutalidade promovida por Estados constituídos. Onde se supunha que haveria racionalidade e método, encontrávamos sangue, choro e ranger de dentes.

 

Os ensaios prelimares da brutalidade bélica de 1914 tiveram início, pode-se dizer assim, depois da revolução de 1905 na Rússia, ainda czarista. Na sequência da fracassada insurgência para derrubar o czar, seguiram-se massacres em massa. “Gangues protofascistas, muitas vezes apoiados pela polícia, vingaram-se de seus inimigos”, conforme relato do historiador Ian Kershaw. Em outubro de 1905, foram relatados mais de 3 mil assassinatos de judeus em 690 pogroms. O czar mandou executar sumariamente mais de 15 mil opositores do regime.

 

Em 1900, o kaiser alemão promove os famosos ataques sanguinários ao boxers chineses. Uma força internacional de países europeus, liderados pela Alemanha, e mais tropas dos EUA e Japão promovem atrocidades na China, quando cerca de 100 mil chineses são mortalmente massacrados.

 

A crueldade dos europeus em suas colônias africanas não tinha limites. No início do século 20, nos primeiros dez anos, o colonialismo belga no Congo matou cerca de 10 mil nativos, inclusive crianças. Os britânicos na África do Sul, no intervalo de três anos, entre 1899 e 1902, promoveram “campos de concentração” com cerca de 28 mil pessoas enjauladas, onde morriam de maus tratos, fome e sede. Aliás, os inventores dos temíveis “campos de concentração” (os bestiais “forced labor camps”) não foram os nazistas alemães, mas precisamente os súditos da Rainha Vitória (que morre em 1901) e do Rei Eduardo, na África. A dominação alemã na África praticamente eliminou os povos autóctones hereró e nama da Namíbia. Assim, cerca de 65 mil pessoas pereceram no deserto escaldante, de sede e fome, pelas retaliações promovidas pelas tropas coloniais alemãs. Em 1911, tropas nacionalistas italianas invadem a Líbia com o intuito de submetê-la como colônia. Ocorre então o primeiro bombardeio aéreo da história: os italianos tripulando um dirigível jogam bombas nas tropas otomanas que fugiam sem entender o dantesco inferno italiano.

 

No início do século 20, havia um grande debate na Europa acerca da eugenia (ou “higiene racial”) e do chamado “darwinismo social”. Duas formas elegantes de dizer que somente os mais aptos têm direito a uma existência próspera e feliz, os demais devem ser eliminados ou desestimulados pelo Estado à busca pelo bem-estar social e cultural. Já havia naquela época ideias de engenharia genética, capaz de operar um processo seletivo de raças e indivíduos escolhidos para um existência digna e feliz, os demais, seriam objeto de eliminação sumária. Numa correspondência privada escrita em 1908, mais de trinta anos antes da “ação de eutanásia” nazista, o aclamado romancista inglês D. H. Lawrence chegava a imaginar – relata o historiador Ian Kershaw – a construção de uma “grande câmara letal” para onde, com um suave fundo orquestral, seriam delicadamente conduzidos “todos os doentes, os coxos e mutilados”. Três destacados intelectuais ingleses, Lord Keynes, H. G. Wells e George Bernard Shaw (este, um socialista fabiano), manifestaram simpatia pelas ideias de eugenia, que taxavam de “ciência progressista”.    

 

Diante destas evidências históricas que nos repugnam e sobressaltam, somos obrigados a admitir que o clima de ódio encontrado nos últimos anos no Brasil, não só tem raízes profundas na velha Europa, como fazem parte de um contexto mais complexo e profundo do que poderíamos supor.

 

Observem que os cerca de trinta anos de guerra aberta na Europa (somando a Primeira e a Segura Guerra), acrescido por quarenta anos de Guerra Fria, sem esquecer as pequenas (mas profundas e cruéis) guerras colonais na África e Ásia, já temos um vasto painel de horrores selvagens e brutais que são o caldo de cultura para o ódio destilado e vertido por aquela senhora desbocada de Londres.

 

Notem que trata-se de um fel velho e ressentido que habita a alma e as entranhas daqueles indivíduos que se sabem superiores aos seus semelhantes, por que creem em deuses superiores, em ideologias superiores e se julgam os predestinados à vida boa. Quem não está nesta chave, fica fora e deve ser eliminado.

 

Outro dia, em uma pequena praia do Rio Grande do Sul chamada Pinhal, no litoral Norte do estado sulino, uma senhora abordou subitamente a deputada Manuela Dávila, filiada a um partido de esquerda, com insultos febris e repreensões de ódio e fel. 

 

Vejam quanto o obscurantismo da direita está globalizado e contagia a atmosfera envenenada que respiramos, seja no Hemisfério Norte, seja no Hemisfério Sul. É que a usina produtora deste fel que nos rodeia igualmente é global e não para de produzir seus frutos amargos e venenosos: seres humanos embrutecidos e doentes.   

 

Em 06 de fevereiro, 2019.

 

Cristóvão Feil

Sociólogo