Favreto e a câmera escura de Marx
Autor: Carlos Frederico Barcellos Guazzelli
Em “A Ideologia Alemã”, obra que só veio a público após sua morte, Marx, cujo bicentenário de nascimento é comemorado neste ano, se utiliza de interessante metáfora para explicar o efeito de reconhecimento ideológico – mecanismo essencial para a submissão dos sujeitos a um sistema de representação (idéias, valores, crenças), qualquer que seja ele. Homem atento e admirador das vertiginosas transformações tecnológicas da Revolução Industrial, ele se utilizou do funcionamento da câmera fotográfica para explicar aquele processo (lembre-se que a fotografia já existia e se aperfeiçoava desde a primeira metade do século XIX, quando o grande pensador era jovem).
Assim como, explica ele, na câmera escura as imagens que estão à direita do cenário fotografado passam à esquerda na imagem projetada (e vice-versa); as que estão ao alto ficam embaixo (e vice-versa); o claro torna-se escuro (e vice-versa); a ideologia provoca inversão similar – fazendo com que o sujeito perceba como verdadeiro aquilo que é falso ou distorcido; bem como considere como seu o interesse que, na verdade, lhe é oposto, titulado por seu dominador.
Posteriormente, tanto na tradição marxista (por exemplo, Gramsci e Althusser, entre outros), como fora dela (Freud, Lacan, etc), vários pensadores seguiram a trilha aberta pelo extraordinário filósofo, enriquecendo as descobertas sobre como os destinatários se reconhecem no discurso ideológico. Já nos tempos que nos cabe viver, sob o incessante bombardeio das diferentes mídias, a transformação dos membros da massa aturdida em robôs manipulados, torna-se tarefa essencial para a preservação e reprodução das dominações de classe, gênero e etnia – e os novos aportes trazidos pela semiologia e pela teoria do discurso têm servido para desvendar as formas pelas quais se opera esta manipulação, na constituição do imaginário dos sujeitos.
A lembrança da antiga metáfora da inversão da imagem na câmera escura, no entanto, impõe-se diante dos espantosos acontecimentos que se precipitaram a partir, e em virtude da decisão proferida, no domingo retrasado, pelo desembargador então responsável pelo plantão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) – acolhendo pedido de liminar em habeas corpus impetrado em favor do ex-presidente Lula, no sentido de lhe conceder liberdade provisória.
Como se sabe, mesmo diante da reiteração da decisão por seu prolator, em novo despacho e também por via telefônica, os agentes da polícia federal de Curitiba, ao invés de cumprir a ordem de soltura do paciente, preferiram obedecer a determinação contrária que lhes foi transmitida, desde Portugal, onde gozava férias, pelo onipresente juiz Moro, e tergiversaram até que o presidente daquele tribunal interveio e cassou a decisão do desembargador plantonista.
Embora diversos juristas já o tenham feito, é preciso insistir, de novo e sempre: o magistrado camisanera, transformado pelos oligopólios midiáticos em herói das chamadas elites, bem como de seus apoiadores nos extratos médios e baixos da população, não tinha e não tem competência – no sentido jurídico de atribuição legal – para tomar decisões acerca da execução da pena que Lula cumpre provisoriamente na sede curitibana da polícia federal. A juíza competente para tanto é sua colega da 12ª Vara Criminal Federal da capital paranaense, a quem, justamente, os impetrantes do pedido de habeas corpus apontaram como autoridade coatora – ou seja, aquela de quem emanou a coação ilegal que buscavam debelar com a medida postulada.
O fato de que, apesar disso, um juiz absolutamente desprovido de competência, ademais em férias, e ainda por cima no estrangeiro, articule o descumprimento de ordem judicial emanada do tribunal ao qual é subordinado, apenas explicita, mais uma vez, e de forma escandalosa, o estado de exceção instituído no país, desde a eclosão do golpe parlamentar, em 2016. De se destacar, a propósito, que durante os períodos previstos em lei para seu funcionamento – nos finais de semana, por exemplo – o responsável pelo plantão da corte é o seu representante legal, a quem cabe precipuamente decidir sobre as questões emergenciais que lhe são trazidas, como habeas corpus, mandados de segurança e pedidos de cautelares.
Portanto, nada, absolutamente nada justificava o ato de avocação praticado pelo presidente daquele colegiado, que desautorizou, sem base legal para tanto, o único representante indicado, legal e regimentalmente, para decidir ali sobre as medidas de urgência naquele dia – substituindo-se ao mesmo, com o propósito de retirar-lhe o caso e submetê-lo, desde logo, ao membro da Turma à qual, somente depois do plantão, caberia regularmente apreciá-lo.
Além do mais, não haveria necessidade alguma de adotar essa manobra desastrada – voltada exclusivamente para impedir algumas horas de liberdade provisória do ex-Presidente da República – pois, à toda evidência, conhecendo-se os precedentes da atuação da 8 ª Turma do TRF-4, em todos os recursos relativos aos processos a que ele reponde, a decisão do plantonista seria revogada imediatamente, assim que se encerrasse o plantão e os autos do habeas corpus lhe fossem remetidos.
Mesmo assim, preferiu-se agir da forma escancaradamente ilegal como se agiu, ao custo de expor a visível parcialidade do juízo para com este réu excepcional: cabe recordar aqui que, em decisão proferida, há pouco mais de um ano, este mesmo tribunal assentou que, nos processos aos quais ele responde, as regras legais, a princípio incidentes, poderiam ser validamente afastadas, devido às excepcionalidades das situações neles tratadas…
Aliás, naquela ocasião, o único a discordar de tão lamentável decisão, foi o desembargador Rogério Favreto, o plantonista que agora ousou conceder o habeas corpus impetrado a favor de Lula. E que o fez, deve-se ressaltar, em despacho bem fundamentado, ao longo de dezesseis laudas, à vista de fatos novos trazidos pelos impetrantes, ainda não apreciados nos acórdãos anteriores proferidos no TRF-4 e nos Tribunais Superiores em relação ao paciente, e com base em pesquisa da jurisprudência sobre os casos similares. Malgrado isso, inexplicavelmente, a Procuradora Geral da República (PGR) ofereceu representação contra ele, perante o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), imputando-lhe o crime de prevaricação – que consiste, segundo o artigo 319 do Código Penal, na conduta do funcionário ou agente público que deixa de praticar ato de seu ofício, ou o pratica “…contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal…”.
Ora, é simplesmente de pasmar: imputa-se este delito ao julgador que, no exercício estrito de sua competência, em decisão motivada, simplesmente…julga! A chefe do ministério público federal, alinhada às barbaridades e tropelias que o sistema de justiça brasileiro vem praticando, desde que se colocou no centro do debate político nacional, acaba de propor a punição de um magistrado pelo crime de exercer a judicatura!
Neste ínterim, outro juiz, sem competência no caso, desde o exterior, articula publicamente manobra tendente a impedir o cumprimento de decisão legalmente proferida, por autoridade de tribunal ao qual está subordinado – ao que tudo indica, para satisfazer seu interesse pessoal em impedir a liberdade, por horas que seja, do personagem contra o qual comanda verdadeira perseguição judicial, em caso típico de lawfare, como mundialmente reconhecido.
Só o fenômeno da inversão das lentes ideológicas, na câmera escura dos tribunais, pode explicar tamanho despropósito: aquele que age regularmente dentro de sua esfera de atribuição, proferindo decisão motivada, é acusado de prevaricar – enquanto é considerada legítima, e até mesmo louvada a atitude de quem, sem jurisdição, se atravessa ao cumprimento de ordem judicial emanada de autoridade competente, de órgão que lhe é superior!
Não se pode perder de vista que, quando magistrados e tribunais se portam como partes, assumindo posições e valendo-se de seus poderes no jogo político, perdem a condição essencial para o exercício legítimo de sua atividade, decorrente de sua posição em princípio estranha aos conflitos sociais – condição esta que é decorrente do que chama de “autonomia”. Em decorrência, a percepção desse ativismo judicial pela população, de que já há vários sintomas, seguramente levará à desmoralização institucional do sistema de justiça, contribuindo para a situação de anomia social que estamos vivendo.
Por fim, diante desse quadro absurdo, resta apelar aos democratas de todos os quadrantes, atônitos diante dos abusos acenados contra um magistrado corajoso, que atuou e atua estritamente sob os ditames legais que regem seu ofício, para que cerrem fileira na sua defesa – como mais um gesto imprescindível em favor da restauração da convivência social civilizada, e de repulsa ao avanço fascista que nos ameaça.
(*) Defensor Público aposentado, Coordenador da Comissão Estadual da Verdade/RS (2012/2014).
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