Intolerância Religiosa.... E a demonização da religiosidade de matriz africana.

21 de janeiro de 2019
Autor: Michele Corrêa

Ateliê15/Conic!

“…Exú brasileiro

Exú nas escolas

Exú nigeriano

Exú nas escolas

E a prova do ano

É tomar de volta

Alcunha roubada

De um deus iorubanos…”

(Exú nas escolas, Elza Soares)

 

Em 27 de dezembro de 2007, a Presidência da República oficializava o dia 21 de janeiro como Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, a data foi instituída pela Lei nº 11.635, em memória do falecimento da Iyalorixá Mãe Gilda do terreiro Axé Abassá de Ogum (BA), vítima de intolerância por ser praticante de religião de matriz africana. A sacerdotisa foi acusada de charlatanismo, sua casa foi atacada e pessoas da comunidade foram agredidas, levando Mãe Gilda a falecer vítima de infarto em 21 de janeiro de 2000, após ter sua foto publicada na matéria “Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes”, do jornal Folha Universal.

A partir da instituição da Lei nº 11.635 a invasão a templos e agressões a religiosas e religiosos de qualquer credo passaram a ser crimes inafiançáveis. A pena vai de um a três anos de detenção, sendo julgada em Varas Criminais e não mais nos juizados especiais. Apesar da modificação na legislação brasileira a Violação de direitos está atingindo, duramente os Povos Tradicionais de Matriz Africana, especialmente na Cidade do Rio de Janeiro, embora os ataques as religiões de matriz africana acontecem em todas as regiões do país. O fundamentalismo avança a passos largos em todas as instâncias, assim não é absurdo pensarmos que, em pleno século XXI, tenhamos a volta da caça às bruxas e bruxos.

Quando o Povo Preto veio para o Brasil, há mais de 500 anos, foi retirado à força de seus territórios para serem escravizados aqui. A Escravidão deixou profundas marcas na vida que vivenciamos. A escravidão justificou as chicotadas do feitor, assim como o uso dos grilhões e o porão fétido do Navio Negreiro. Violentou direitos, a língua, cultura, religião, a vida enfim… nossos valores civilizatórios. Junto a tudo isso veio a Colonização.

Com o tráfico negreiro, foram trazidos diversos povos de diversas regiões do continente africano para o nosso país. Os historiadores Vianna Filho e Pierre Verger afirmam que a vinda forçada das populações africanas se deu em quatro grandes ciclos: o primeiro, trazendo pessoas da Costa Guiné, durante a segunda metade do século XVII; o segundo, trazendo pessoas da Bacia do Congo, sobretudo dos atuais Congo e Angola, no século XVIII; o terceiro, trazendo pessoas da Costa da Mina, durante quase todo século XVIII; o último, trazendo pessoas da Baía do Benin, entre 1770 e 1850. As três tradições que constituíram os Povos Tradicionais de Matriz Africana vieram nos três últimos ciclos: os povos de língua banta, vindos no segundo ciclo; os povos de língua ewé-fon, no segundo ciclo; e os povos de língua ioruba, no último ciclo. Entendendo que cada tradição advinda da África trouxe para cá sua história, cultura, religião, língua, dialeto, mitos, valores.

As práticas sagradas dos Povos Tradicionais de Matriz Africana ressignificaram símbolos e territórios. A África dentro de cada Terreiro de Candomblé ordenou a liturgia e resiste até hoje seguindo um caminho deixado pela nossa ancestralidade. A religião na África é comandada por homens, aqui no Brasil se deu o inverso, porque aqui as mulheres foram as primeiras a conquistar suas alforrias. Assim quando falamos de Intolerância Religiosa, não estamos falando de qualquer Intolerância. Estamos questionando o porquê da demonização da religiosidade de Matriz Africana.

Os ataques e perseguições são mais antigos que possa parecer. Cito aqui a Quebra de Xangô, Dia do Quebra ou Quebra de 1912, fato registrado pelos estudiosos da História do Brasil. Um crime hediondo de Intolerância Religiosa que aconteceu no dia 1º de fevereiro de 1912 em Maceió, Alagoas. O ato culminou com a invasão e destruição dos principais Terreiros de Xangô em Maceió. Todas as Casas de Culto Afro-brasileiro existentes foram destruídas. Terreiros foram invadidos, objetos sagrados retirados e queimados em praça pública. Pais e mães de Santo foram espancados. A partir daí os adeptos, iniciados nas práticas de Culto aos Orixás, criaram o chamado Xangô Rezado Baixo. A Constituição de 1891 garantia a liberdade de crença e culto, porém o código penal de 1890 criminalizava as Casas Sagradas e tipificava as manifestações, práticas rituais, como curandeirismo, baixo espiritismo, charlatanismo, alegando o exercício ilegal da medicina. No período de 1889-1930 era comum a polícia perseguir os Cultos das religiões de Matriz Africana, invadindo terreiros e apreendendo objetos sagrados.

O Código Penal de 1890 criminalizava também o samba e a capoeira. Ou seja, tudo que fosse resultante da Cultura Afro-brasileira. No período da República, o Candomblé foi proibido de exercer as suas atividades e os Terreiros ficaram subjugados à Delegacia de Jogos, Entorpecentes e Lenocínio (ação de explorar, estimular ou favorecer comércio carnal ilícito, ou induzir ou constranger alguém a sua prática). Portanto, sempre estivemos à margem, e o Estado Brasileiro não coibiu, de forma efetiva, as várias manifestações de Racismo Religioso que ocorreram no País até os dias de hoje.

É importante lembrar que, hoje, no Museu da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, há mais de duzentas peças sagradas da Umbanda e do Candomblé apreendidas desde a Primeira república (1889-1930). Nessa época, as Religiões Afro-brasileiras também foram duramente perseguidas e proibidas. Entre 1945 e 1985, o acervo religioso apreendido foi classificado de forma racista, pejorativa como “Coleção de Magia Negra”.

Lá se vão mais de cem anos e o acerco dos Povos Tradicionais e Matriz Africana ainda se encontra no Museu da Polícia Civil. Os ataques a Terreiros avançam de forma violenta, instaurando assim uma cultura criminosa, que instaura o ódio religioso. Como vimos, a História não apresenta novidade nesse processo. O Racismo Religioso vem de longe…  Acompanha nossos passos desde que trouxeram nossos ancestrais para cá.

É preciso reforçar que o Brasil é um Estado Laico. Se é laico, não possui religião oficial ou uma crença que mereça privilégios em detrimento de outras. Em um país laico, todas as expressões religiosas devem ser igualmente respeitadas e atendidas em suas diferentes demandas – sobretudo protegidas! Por isso, é papel do Estado garantir liberdade de culto não apenas às igrejas cristãs, mas também às mesquitas, sinagogas, templos budistas, casas de umbanda, terreiros de candomblé, centros espíritas, etc. Em 2015, foi criada uma agência especificamente dedicada à Discriminação Religiosa, chamada Assessoria de Diversidade Religiosa e Direitos Humanos. É registrada uma denúncia de intolerância religiosa a cada 15 horas. Os adeptos de religiões de matriz africana estão entre os principais alvos. Casos recentes, como os ataques nas redes sociais contra a imagem, o legado e a memória de mãe Stela de Oxóssi, no fim do ano passado, e os ataques a terreiros em comunidades do Rio, deixam claro que muita coisa precisa mudar.

 

Referências:

PIEDADE, Vilma. Dororidade. Editora NÓS, 2017.

https://conic.org.br/portal/noticias/2943-21-de-janeiro-o-dia-nacional-de-combate-a-intolerancia-religiosa?fbclid=IwAR1hGbn7y_EdqytuKAG5XUWaIZtZ-L64rV47t5eUNGtB-IvSn4RQ6pO5Y6g

 

 

Michele Corrêa

Graduanda em Filosofia na UFPel,

Assessora da Pastoral da Juventude (PJ) e

Militante do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA).