Miscigenação, Eugenia e Colorismo
Autor: Michele Corrêa
Há poucos dias escrevi um artigo intitulado “Morena, parda ou negra? A invenção do Colorismo”, é um assunto que não se esgota, muitas são as pesquisas, estudos e debates em torno do tema. Suas consequências são sentidas desde antes da abolição da escravatura em 1888, e se manifesta de diversas formas, porém é central nos debates relacionados a temática racial na atualidade, não só no Brasil, como no exterior. O debate em torno da Princesa Meghan Markle em virtude de seu casamento com o Príncipe Inglês Harry é um exemplo, Meghan é uma mulher negra de pele clara, aos olhos da maioria de brasileiras e brasileiros seria considerada uma mulher branca, porém para os padrões ingleses é uma mulher negra, e mulheres negras na Inglaterra assim como no Brasil sofrem forte preconceito racial. Assim o ingresso de Meghan na família real suscitou um forte debate em nível mundial sobre Colorismo.
Mas o que é Colorismo? De maneira simplificada, colorismo refere-se ao fato de que as discriminações dependem também do tom de pele, da pigmentação de uma pessoa. Assim, entre pessoas negras ou afrodescendentes, há diferenças no tratamento, vivências e oportunidades, a depender de quão escura é sua pele. Cabelo crespo, formato do nariz, da boca e outras características fenotípicas também podem determinar como as pessoas negras são lidas socialmente. Assim, pessoas mais claras, de cabelo mais liso, traços mais finos podem passar mais facilmente por pessoas brancas e isso as tornaria mais toleradas em determinados ambientes ou situações.
A antropóloga e historiadora Lilia Moritz Scchwarcz questionou certa vez: Como determinar a cor se, não se fica sempre negro e/ou se ‘embranquece’ por dinheiro ou se ‘empretece’ por queda social”? Para falar sobre colorismo precisamos considerar classe, escolarização e outros marcadores sociais da diferença. No artigo que citei no início do texto tratei do termo pardo, agora vou apresentar historicamente a origem dos termos negro, preto e crioulo como designação das pessoas afrodescendentes como forma de fazer um resgate histórico da nossa construção identitárias e das opressões sofridas ao longo desse processo.
No período escravocrata o termo negro era usado para designar o escravizado insubmisso e o termo preto o escravizado fiel, porém até a primeira metade do século 19 utilizava-se o termo crioulo para referir-se ao escravizado nascido no Brasil e preto para os escravizados africanos. Assim os censos referentes ao período colonial evidenciam esse jogo de termos utilizados para classificar e dividir a massa de escravizados, seguindo essa mesma lógica iniciou-se as classificações por cor, onde nos primeiros censos constavam as classificações em pretos, brancos e mestiços e no censo de 1950 a população foi distribuída em brancos, pretos, amarelos e pardos, onde os indígenas não possuíam classificação. Em 1980, havia para os pardos a seguintes composição: mulatos, mestiços, indígenas, caboclos, mamelucos, cafuzo.
Todos esses conceitos e classificações foram construídos socialmente e culturalmente a partir da miscigenação e instrumentalizados como forma de garantir a não unidade dos afrodescendentes e não brancos. É importante atentar que a primeira fase de miscigenação no Brasil ocorreu de forma violenta. Sendo as mulheres escravizadas, indígenas, africanas e afrodescendentes, consideradas objeto de posse de seus senhores, sendo violentadas sexualmente, ora como forma de dominação e castigo, ora como forma de obtenção de lucros, pois os filhos gerados pelas escravizadas nasciam escravizados, e eram também considerados peças de posse dos senhores, sendo em muitos casos vendidos.
Uma segunda fase da miscigenação deu-se a partir da política de importação de mão de obra imigrante realizada logo após abolição, com o objetivo de que gradualmente ocorre-se o branqueamento da população brasileira. Em 1911, o médico e antropólogo João Baptista de Lacerda, então diretor do Museu Nacional, participou do I Congresso Internacional das Raças, em Londres, e apresentou a teoria do “branqueamento do povo brasileiro”. Graças ao processo de miscigenação, acreditava-se que, a cada nova geração, os descendentes de negros tenderiam a ficar “mais brancos”. “A população mista do Brasil deverá ter, no intervalo de um século, um aspecto bem diferente do atual. As correntes de imigração europeia, aumentando a cada dia mais o elemento branco desta população, acabarão, depois de certo tempo, por sufocar os elementos nos quais poderia persistir ainda alguns traços do negro”, escreveu ele no artigo Sur Les Métis au Brésil (Sobre os Mestiços do Brasil, em livre tradução).
Para defender seu ponto de vista, João Baptista exibiu uma cópia do quadro A Redenção de Cam (1895), do pintor espanhol Modesto Brocos y Gómez, que ele classificava como “a representação do futuro nacional”. Na pintura, uma senhora negra agradece “aos céus” pela pele clara do neto, sentado no colo da filha mestiça, ao lado do marido branco. “Resquícios da teoria da eugenia continuam vivos na sociedade brasileira, mascarados pela ideia de uma ‘democracia racial’ que não corresponde à expectativa vivida pela população negra. É essa vivência que leva os militantes a tal posicionamento”.
Tal política de miscigenação se apoia na Teoria da Eugenia. Eugenia é um termo que veio do grego e significa ‘bem nascido’. “A eugenia surgiu para validar a segregação hierárquica”. A ideia foi disseminada por Francis Galton, responsável por criar o termo, em 1883. Ele imaginava que o conceito de seleção natural de Charles Darwin – que, por sinal, era seu primo – também se aplicava aos seres humanos. Seu projeto pretendia comprovar que a capacidade intelectual era hereditária, ou seja, passava de membro para membro da família e, assim, justificar a exclusão dos negros, imigrantes asiáticos e deficientes de todos os tipos. O Brasil não só ‘exportou’ a ideia como criou um movimento interno de eugenia.
Médicos, engenheiros, jornalistas e muitos nomes considerados a elite intelectual da época no Brasil viram na eugenia a ‘solução’ para o desenvolvimento do país. Buscando, portanto, respaldo na biogenética (ou seja, nos estudos e resultados de pesquisa de Galton) para excluir negros, imigrantes asiáticos e deficientes de todos os tipos. Assim, apenas os brancos de descendência europeia povoariam o que eles entendiam como ‘nação do futuro’. Nos primeiros anos do século XX, porém, havia no Rio, então capital brasileira, a ideia de que as epidemias brasileiras eram culpa do negro, recém-liberto com a abolição da escravatura (1889). Portanto, para parte da elite intelectual da época, a eugenia seria uma forma de ‘higiene social’, tanto que “saneamento, higiene e eugenia estavam muito próximas e confundiam-se dentro do projeto mais geral de ‘progresso’ do país”.
O termo eugenia pode ter desaparecido, mas as perguntas, o pensamento e a preocupação permaneceram… Precisamos estar atentas as artimanhas da opressão, que não cessou no pós 1888, mudou suas formas, utilizando a pigmentação da pele para manter milhões de brasileiras e brasileiros negros acorrentados a pobreza, miséria e violência. A luta por dignidade das populações negras não cessará, resistiremos a todo ataque a direitos adquiridos… Resistir é nossa essência!
Referências:
http://mpabrasil.org.br/morena-parda-ou-negra-a-invencao-do-colorismo/
https://almapreta.com/editorias/realidade/eugenia-por-um-brasil-mais-branco
http://revistapesquisa.fapesp.br/2007/04/01/quase-pretos-quase-brancos/
https://www.geledes.org.br/os-tracos-da-hereditariedade-cor-raca-e-eugenia-no-brasil/
https://www.geledes.org.br/o-afro-descendente-e-a-construcao-do-brasil/
http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra3281/a-redencao-de-cam
Por Michele Corrêa
Graduanda em Filosofia na UFPel,
Assessora da Pastoral da Juventude (PJ) e
Militante do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA)