O golpe faz a viagem do Corvo


O golpe jurídico-parlamentar perpetrado criminosamente no Brasil em 2016 está na encruzilhada de seu próprio malogro: ou se desmorona como uma torre de areia em praia brava, ou se obriga a uma ditadura policial e repressiva. Como esta segunda hipótese exige organicidade, inteligência, operadores civis e militares preparados e líderes resolutos (sempre no âmbito da direita), na falta disto, não se consuma, mesmo porque cessará certamente o patrocínio oculto (mas efetivo) da NSA (National Security Agency, cujo apelido é Never Say Anything, e 40 mil funcionários estatais) e CIA (Central Intelligence Agency, orçamento anual de 18 bilhões de dólares, e 21 mil funcionários estatais). Já o desmoronamento é hipótese mais plausível neste cenário de muitas incertezas e raras previsibilidades.

Assim sendo, pode-se afirmar que o golpe 2016 faz a sua viagem do corvo, a derradeira jornada rumo à confirmação do desastre completo. A cinematográfica metáfora bíblica do corvo de Noé, que não volta porque está ocupado em alimentar-se dos despojos dos que sucumbiram no dilúvio de falidas veleidades.

A mídia internacional, através de grandes jornais como Guardian, New York Times, Le Monde, e agências de notícias, têm informado ao mundo sobre a farsa que ocorre no Brasil, depois do golpe de 2016. A crise econômica do País, os índices alarmantes de desemprego e desalento dos trabalhadores, aliado à falência da segurança pública em todos os rincões nacionais, sem esquecer a degradação institucional generalizada e o comércio descarado do patrimônio público alienado a interesses estrangeiros evidenciam a intenção criminosa dos protagonistas do golpe.

Dias atrás, ativistas e militantes de várias origens encerraram um jejum intencional como forma de protesto contra o golpe, pela liberdade de Lula, e mais especificamente contra a militância do Poder Judiciário, este como avalista do atual estado de exceção em que vivemos. Foram vinte e seis dias de um movimento pacifista de enorme simbolismo político. Uma denúncia potente e certeira do conluio entre o golpe parlamentar de 2016 e a sustentação farsesca de um Judiciário politizado e militante da causa antidemocrática.

À distância e de forma míope, alguém pode classificar os jejuadores pela democracia como voluntariosos imitadores de Cristo em uma jornada inglória fadada ao fracasso, posto que a direita casca-grossa jamais se sensibilizaria com esse protesto passivo e silencioso. Mas de perto e conhecendo a estratégia politizada que foi traçada o resultado é bem outro. Foram dias de provação, de luta renhida e denúncia efetiva do papel covarde do Judiciário no processo de degradação geral pelo qual passa o Brasil. Foi uma luta inspirada no princípio da “satyagraha” de Gandhi, a busca da verdade, a denúncia das responsabilidades e a perseguição da justiça, sempre através da não-violência, sem abdicar jamais da bravura irresignada e combativa.

Os mesmos elementos tático-políticos usados depois pelos grandes ativistas Martin Luther King, nos Estados Unidos, na luta pelos direitos civis da população afro-descendente, e Nelson Mandela, na África do Sul, com os resultados exitosos conhecidos.

Foram mais de três semanas de encontros presenciais com quase todos os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), onde se destacou a reunião com a presidenta da corte, Carmen Lúcia, que ouviu por mais de uma hora as denúncias do Nobel da Paz, Adolfo Perez Esquivel, o franciscano Frei Sérgio Göergen, o ex-presidente da OAB, Marcelo Lavanère, o líder do MST, João Pedro Stédile e demais militantes. A pauta foi repetida com outros ministros do Supremo, como Dias Tóffoli, Levandovski, Rosa Weber, Barrosinho, Gilmar Mendes (este não pode recebê-los pessoalmente, mas determinou que seu gabinete os recebessem e gravassem o conteúdo da reunião). O ministro Edson Fachin recusou-se a reunir com o grupo, alegando expedientes ridículos do tipo “furou o pneu do trem”, sabendo-se que o MST do Paraná foi quem praticamente bancou o seu nome para ser nomeado pela presidenta Dilma, em 2015. Outros ministros, igualmente, determinaram que o seu gabinete os recebesse e registrasse as denúncias do grupo, sobretudo aquelas que dizem respeito à prisão injusta e ilegal de Lula, bem como o seu impedimento de disputar eleições livres em condições de igualdade com os demais concorrentes.

A luta deste bravo grupo foi inédita no Brasil, mostrou que podem-se ampliar as formas de participação política através de experiências exitosas de outros povos, incorporando práticas que não só convencem, mas arrastam corações e mentes a concluírem acerca da justeza do objeto em pauta.

A negativa de alguns ministros para com o diálogo aberto – para além das fortalezas e casamatas do poder que representam – é denunciador de suas consciências pesadas quanto à estreita responsabilidade acerca do quadro crítico pelo qual passamos. Pessoalmente, no íntimo de cada um, nada mudará (tratam-se de recipientes portadores de desertos de humanidade), mas o fato avulta e viraliza na sociedade como reforço à denúncia de uma covardia inominável.

Fica aqui, pois, a sugestão de um vídeo-documentário sobre o jejum-denúncia. É preciso um registro histórico destes fatos que duraram vinte e seis dias e que a mídia corporativa (e golpista) do Brasil ignorou solenemente. Que sejam dez ou sessenta minutos de um documentário ágil, didático e bonito com depoimentos de cada um dos jejuadores e jejuadoras (as mulheres tiveram uma presença forte e determinante) acerca desta lição do fazer político e da denúncia de um golpe de Estado que se arrasta como farsa destruidora e trágica.

Por fim, a propósito dos desmandos do Poder Judiciário do Brasil, quero lembrar uma pequena mas forte consigna do famoso discurso cristão do Sermão da Montanha (em Lucas e Mateus), tão admirado por Mahatma Gandhi que sempre o citava em suas reflexões pacifistas à população indiana: “Toda árvore que não der bons frutos será cortada e lançada ao fogo”.

Significa dizer que o pacifismo militante não combina com resignação e apatia.

Em 28 de agosto, 2018.

 

Cristóvão Feil

Sociólogo