Por que a dor da mulher negra não sensibiliza?
Autor: Michele Corrêa
“Sei que vocês sentem comichões e vontade de vaiar quando veem uma mulher de cor se levantar e falar a respeito de coisas e dos direitos das mulheres. Nós fomos tão rebaixadas que ninguém pensou que iríamos nos levantar novamente; mas já fomos pisadas por tempo demais; vamos nos reerguer, e agora eu estou aqui.”
Sojourner Truth
Sempre que algo ou alguém me faz recordar a personagem “escrava Isaura”, do romance escrito por Bernardo Guimarães em 1876, o questionamento que intitula este artigo me vem à mente, questionamento que me persegue e atormenta desde a adolescência. Tal romance rendeu a seu autor, Bernardo Guimarães fama, sendo reconhecido até pelo imperador do Brasil, Dom Pedro II. Escrito em plena campanha abolicionista (1875), o livro conta as desventuras de Isaura, escrava branca e educada, de caráter nobre, vítima de um senhor devasso.
A obra foi um grande sucesso, permitindo que seu autor se tornasse um dos mais populares romancistas de sua época. Escrito para ser uma obra antiescravagista e libertária, o romance exagera em idealização romântica, para conquistar a imaginação popular perante as situações intoleráveis do cativeiro, ressaltando exaustivamente a beleza branca e pura de Isaura, que não denunciava a sua condição de escrava porque não portava nenhum traço africano, era educada e nada havia nela o que “denunciasse a sua situação de escrava”.
Por que uma personagem escrava branca sensibiliza e milhões de mulheres negras escravizadas não? Talvez porque o modelo de beleza feminino, caracterizado pela pele branca e maçãs rosadas do rosto, conquista a solidariedade dos leitores e leitoras, e também telespectadores, o romance se tornou na década de 70 uma telenovela produzida pela Rede Globo e em 2004 pela Rede Record. O romance mostra a que ponto extremo poderia chegar o regime escravocrata: “fisicamente, Isaura não é diferente das damas da sociedade, mas, por ser escrava, é obrigada a viver como os de sua classe, como objeto útil nas mãos de seu senhor”, situação que causa escândalo e repulsa, diferente da situação das escravizadas negras, que não despertam tal escândalo ou repulsa, nem mesmo empatia.
O Brasil recebeu em torno de aproximadamente 05 milhões de pessoas arrancadas do continente africano para ser mão de obra escravizadas, entre eles milhões de mulheres. Mulheres negras que sofreram abusos, foram humilhadas, estupradas, chicoteadas e assassinadas. Não havia cargas diferentes de trabalho entre escravizados homens e escravizadas mulheres, assim como não havia também diferenças em relação as punições, apesar de as mulheres sofrem também as punições sexuais, como estupros.
É importante dizer que a cultura do estupro existe desde o período da escravidão. Mulheres negras escravizadas eram abusadas pelos senhores de escravos e submetidas às mais variadas formas de violência. A filósofa americana Angela Davis, em seu livro Mulher, Raça e Classe, aborda o fato das mulheres negras não serem tratadas como frágeis e castas, ao contrário, tiveram de realizar trabalhos forçados que precisavam do uso da força. Davis inicia o livro com o capítulo “Legado da escravatura: bases para uma nova natureza feminina” falando sobre o modo pelo qual a mulher negra escravizada era tratada de modo a ofuscar uma “natureza feminina”, uma vez que elas eram forçadas a desempenhar o mesmo trabalho dos homens negros escravizados. O que as diferenciavam dos homens, e essa se torna uma diferença crucial, era o fato de terem seus corpos violados pelo estupro.
No Brasil, as mulheres negras tiveram a mesma experiência. Importante ressaltar que a miscigenação tão louvada no País também foi fruto de estupros sistemáticos cometidos contra mulheres negras. Essa tentativa de romantização da miscigenação serve para escamotear a violência.
Ainda hoje quando olhamos a situação das mulheres brasileiras percebe-se o quanto é distinta a vida da maioria das mulheres negras em relação as mulheres brancas. O Brasil mata 71% de mais mulheres negras que brancas. Nos últimos dez anos, os números de assassinatos caíram 8% entre as mulheres brancas. E aumentaram 15,4% entre as negras. Em 2016, 4.645 mulheres foram assassinadas no Brasil – um total de 4,5 mulheres mortas a cada 100 mil brasileiras, a maioria das vítimas era negra. As informações são do Atlas da Violência 2018 do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicada (Ipea) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A taxa de homicídio naquele ano foi de 5,3 a cada 100 mil negras; e de 3,1 a cada mil 100 mil mulheres brancas. Uma diferença que chega a 71% entre as raças – e que evidencia os impactos das desigualdades raciais do País.
Em 1851, durante uma convenção, nos Estados Unidos, pelos direitos das mulheres Sojourner Truth, militante abolicionista, pioneira na luta pelos direitos civis dos negros e das mulheres nos EUA, que fez ressoar a pergunta “Não sou eu uma mulher?”, em seu memorável discurso, um dos discursos feministas mais importantes de todos os tempos:
“Não sou eu uma mulher? Olhe para mim! Olhe para o meu braço. Arei a terra, plantei, enchi os celeiros, e nenhum homem podia se igualar a mim! Não sou eu uma mulher? Eu podia trabalhar tanto e comer tanto quanto um homem – quando eu conseguia comida – e aguentava o chicote da mesma forma! Não sou eu uma mulher? Dei à luz treze crianças e vi a maioria ser vendida como escrava e, quando chorei em meu sofrimento de mãe, ninguém, exceto Jesus, me ouviu! Não sou eu uma mulher?”
Ao repetir sua pergunta, “Não sou eu uma mulher?”, nada menos do que quatro vezes, Sojourner Truth expunha o viés de classe e o racismo do movimento de mulheres que surgia. Nem todas as mulheres eram brancas ou desfrutavam do conforto material da classe média e da burguesia. Sojourner Truth era negra – uma ex-escrava –, mas não era menos mulher do que qualquer uma de suas irmãs brancas na convenção. O fato de sua raça e de sua situação econômica serem diferentes daquelas das demais não anulava sua condição de mulher. E, como mulher negra, sua reivindicação por direitos iguais não era menos legítima do que a das mulheres brancas de classe média. Assim hoje, a situação de violência a qual vivem as mulheres negras, faz necessário questionar: “Não sou eu uma mulher?” e “Por que nossa dor não os sensibiliza? Não as sensibiliza?”.
Na semana que em nos mobilizamos com maior intensidade nas lutas pela consciência negra (20 de novembro) e pela erradicação da violência contra a mulher (25 de novembro) lembramos a vida das mulheres negras brasileiras desde a chegada nos navios negreiros aos dias atuais, lutando e conquistando direitos, sempre ameaçados. Existimos porque resistimos, mas nossas dores e chagas ainda são enormes, mordazes! Precisamos continuar resistindo, quebrando as amarras e fazendo ressoar nosso grito de liberdade. Somos filhos e filhas de Dandara e de tantas outras mulheres negras que construíram este país com suor, sangue e lágrimas.
Michele Corrêa
*Graduanda em Filosofia na UFPel,
Assessora da Pastoral da Juventude (PJ) e
Militante do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA).
Referências:
https://www.cartacapital.com.br/sociedade/cultura-do-estupro-o-que-a-miscigenacao-tem-a-ver-com-isso
https://www.cartacapital.com.br/diversidade/brasil-mata-71-mais-mulheres-negras-do-que-brancas
https://claricesemarias.com/2018/03/24/e-nao-sou-eu-uma-mulher-de-sojourner-truth/
https://blogdaboitempo.com.br/2018/11/26/angela-davis-a-potencia-de-sojourner-truth/