Se serve de consolo, a Rússia já viveu um abismo bem maior que o Brasil de hoje


O novíssimo governo do Brasil está se desmanchando pelas sucessivas denúncias de práticas ilícitas da família do presidente Bolsonaro, bem como de suspeitas de relação promíscua com milícias do Rio de Janeiro. Milícias, todos sabem, são destacamentos criminosos formados majoritariamente por policiais militares da ativa, aposentados ou expulsos da corporação por práticas de corrupção passiva e ativa, extorsão, agiotagem, grilagem de terras, controle armado de favelas e comunidades de periferia, crimes de justiçamento e execução, etc. O atual presidente, Jair Bolsonaro aparece em inúmeras gravações de áudio e vídeo onde exalta abertamente de supostos benefícios da ação das milícias, que eliminam criminosos e traficantes de forma cruel e voluntariosa, ignorando a lei e a ordem pública.

Assim, os graves fatos dos primeiros vinte e poucos dias de governo Bolsonaro já estão sendo chamados pela mídia internacional de Bolsogate, em alusão ao célebre escândalo político denominado Watergate, ocorrido em 1974 nos Estados Unidos que, ao vir à tona, acabou por culminar com a renúncia do presidente Richard Nixon, do Partido Republicano. 

Diante disto tudo, da gravidade política da atual situação brasileira, na sequência de um golpe de Estado, ocorrido em 2016, das inúmeras irregularidades e atalhos da Justiça para condenar sem provas o ex-presidente Lula e encarcerá-lo para impedir a sua participação livre e autônoma no processo eleitoral de 2018, pode-se classificar o caso político-institucional brasileiro de abismal e ameaçador, não só para o nosso próprio futuro, mas passível de contaminar outros países da América Latina e do Hemisfério Sul. O Brasil preocupa por que está envolvido em um imbroglio prolongado e sem solução satisfatória a vista. Alguém pode dizer que estamos em um beco sem saída. E ninguém está apto a chamar a este alguém de estar pintando o quadro brasileiro com as cores do pessimismo e da derrota.

Buscando um paralelo com outros povos e outros países, e cumprindo o objetivo de aprender qual foi a saída para estes povos e países, chegaremos à conclusão que a Rússia, ex-União Soviética, pode ser aquele que se presta à comparação com o Brasil deste nosso infindável buraco crítico.

Todos conhecemos – a literatura é farta – como foi a derrocada da União Soviética, que já vinha em um processo arrastado de degradação e crises estruturais persistentes.

[Não quero aqui fazer a crítica ao stalinismo, mas apenas mostrar a queda da URSS e a subsequente ascensão russa (sempre crivada de conflitos os mais dramáticos e profundos) por outro modelo que não o capitalismo de Estado da era soviética.]

Quando cai o chamado Estado soviético, em 1991, pelos Acordos de Belavezha, desmorona a fortaleza construída com grande esforço desde 1917. Em 1997, seis anos depois da dissolução da URSS, o PIB da Rússia era menos da metade dos níveis de 1989 (ano da queda do muro de Berlim).

Havia sinas de declínio, desde os anos 1980, na produção de energia, na indústria siderúrgica, na produção agrícola (alimentos), e produção de petróleo/gás e derivados. Sem contar o investimento equivocado em indústria pesada, com baixíssima produtividade (quase toda voltada para finalidade militar), em detrimento de planejamento e investimento em pesquisa, ciência e tecnologia.

 

Em substituição ao Estado soviético forte e pesado, sobreveio um período de grande confusão político-institucional, onde a criminalidade e as máfias quase tomam conta da fragilidade estatal e da incapacidade de reação da sociedade civil. O Estado sem o monopólio da violência legítima vira alvo fácil de oportunistas, bandidos avulsos e organizados, e toda a sorte de aventureiros e salteadores do público e do privado. Sem esquecer da volta de velhas oligarquias que passam a dominar setores econômicos importantes e disputam com o Estado a força e o poder, reproduzindo cenários sociais do século 19 da velha Rússia czarista. O setor de petróleo o gás, que sempre foi estratégico para o povo russo, esteve por algum tempo quase integralmente capturado por oligarquias criminosas e novos ricos delinquentes. Um exemplo foi a mega petroleira Yukos, privatizada no governo Iéltsin, na década de 1990 (até 1994, cerca de 70% das estatais do país já haviam sido privatizadas em um processo criminoso de lesa-pátria), e adquirida por um milionário criminal. Vladimir Putin forçou um processo de reestatização e o ex-dono foi objeto de processo judicial, que durou quase um ano, por crimes de sonegação fiscal, corrupção ativa e passiva, fraude e roubo. Ele foi condenado e preso.

A era Vladimir Putin se inicia em 1999 e dura até nossos dias, com alguns interregnos devido a impedimentos constitucionais para mandatos renovados e continuados. Acaba sendo um período de ascenso da grandeza russa, da reorganização do Estado (com uma grande reforma no âmbito militar e policial), de novas definições na geopolítica internacional (se afastamento do alinhamento acrítico e subordinado ao eixo EUA-Reino Unido, do período neoliberal e mafioso de Boris Iéltsin), de retomada da confiança majoritária da população com o retorno da estabilidade política e do progresso econômico (como sempre há críticas duras daqueles que desejam um alinhamento automático ao Ocidente e práticas de democracia formal igualmente ocidentais), de reocupação da condição de potência nas áreas de energia e defesa nuclear (com arsenal mais numeroso e complexo que os EUA). De 1999 a 2008, no primeiro período da gestão Putin, a Rússia incrementou o PIB em 72%, o lucro real das empresas aumentou 2,5 vezes, e a massa salarial aumentou em 300%. 

Putin e a sua decisiva retomada da soberania russa, ainda que por via do velho capitalismo de mercado, é a demonstração viva e ilustrada do fracasso dos chamados choques de gestão neoliberal, no caso russo, protagonizado pelo decênio criminoso e irresponsável de Boris Iéltsin. Putin, por vezes com mão de ferro, reorganiza o Estado e o promove a dirigente de um projeto nacional que subordina e orienta os capitais privados, sejam nacionais ou internacionais, a obedecerem uma ordem político-econômica socialmente inclusiva e distributivista. Mais que isso: projeta a Rússia a um protagonismo geopolítico e geoeconômico com destaque e liderança mundial (vide os BRICS), fazendo justiça à ancestral cultura e arte russa, que todos conhecemos através da literatura de seus grandes escritores e intelectuais.    

Trago essa memória da história recente da Rússia, que parte de uma auto-dissolução do próprio Estado e o leva à anomia social e o consequente domínio de gangues e máfias, passando por um período de reconstrução nacional e a lenta retomada como protagonista no cenário geopolítico mundial, para comparar um pouco com a situação igualmente caótica do Brasil de nossos dias.

Assim, visto frente a frente, observa-se que o Brasil está em um patamar menos crítico do que a Rússia dos anos 1990. O golpe de 2016 e os seus desdobramentos atuais (afinal, tudo deriva da decisão da direita de não aceitar a vitória de Dilma na sua reeleição), nos jogaram na irresponsabilidade total e na perigosíssima aventura do bolsonarismo de não-resultados. Mas, como vimos, ainda não chegamos ao fundo do poço, e trata-se de perseverar mais e mais na construção de uma unidade das forças democráticas do País, das esquerdas aos setores sinceros do que ainda resta do tímido liberalismo do Brasil.

Se a Rússia saiu do abismo, nós também podemos lograr esta conquista nacional-popular.

 

Cristóvão Feil, sociólogo

Em 23 de janeiro, 2019.