Sobre Simulacros (coluna "Prismas", de Maria Thereza Veloso)


Damos as boas vindas à professora-doutora Maria Thereza Veloso e sua coluna “Prismas”, que a partir de hoje tem espaço cativo em nossa Rede Soberania semanalmente. A professora Tetê é graduada em Estudos Sociais e Letras, tendo mestrado e doutorado em Letras/Linguística. Atualmente coordena no Mestrado em Letras/Literatura Comparada na URI/Frederico Westphalen e atua nos campos do Comparatismo, Processos Culturais e Análise do Discurso. Sem mais delongas, vamos à partilha deste primeiro Prisma na rede:

 


Sobre simulacros

01
Não é de hoje que a sabedoria popular nos lembra não ser à toa o fato de termos dois ouvidos, dois olhos e uma só boca, esta levando consigo a capacidade de sentir sabor e com isso exercitar os atos de engolir e expelir. A lição é a de que temos de ouvir e ver mais do que falar. Temos também a condição de distinguir não só os sabores e as imagens, mas distinguir intensidade e inflexões de vozes e outros sons. Daí a capacidade para decidirmos sobre o que convém absorver por prazer, e o que convém expelir por bom senso, prevenindo-nos dos efeitos, pois estes agirão como cupins, solapando-nos emocionalmente, travando nosso autocontrole. Em suma, precisamos degustar, distinguir sabor e dissabor tanto quanto entender que, em todas as circunstâncias, faz-se imperioso resistir na preservação da invejável capacidade que temos para discernir não só por instinto, mas também pelo uso da razão.

 

02
Fatos similares desse cotidiano que nos está sendo imposto por um poder difuso me levaram a lembrar desse saber popular e a confrontá-lo com o repto do momento, mundo afora – resistir. Mas resistir a quê? A quem? Quando? Onde? Como? Para quê? A propósito, lembrei do que afirmou uma jovem síria refugiada de seu país. Na época com 18 anos, Nour Alhmad avaliou desta forma a viagem que fizera fugindo da terra onde nascera: “Aprendemos muito com essa viagem. Temos que ser fortes, porque a vida pede que sejamos fortes. E esta é a jornada.” Como interpretar essa avaliação, nascida de uma jovem de apenas 18 anos? Aprendizagem? Explicação? Entendimento? Constatação? Determinação? Um pouco de tudo isso, sim. Se pensarmos bem, acabamos vivendo como simulacros de nós mesm@s.

 

03
Parece muito forte usar esse termo para nos definirmos, mas é o que a realidade está fazendo, num clima que nos querem impingir como o único possível nessa espécie de quase caos que lhes é útil. Somos rostos desconhecidos, nossas vozes não são audíveis. De onde elas vêm? Que timbre possuem? Estamos nos transformando em seres virtuais, deletáveis a um simples toque de “mouse”? E não nos importamos com isso?! A quem e a que interessa esse desmonte sem perspectivas de nossas esperanças por justiça, equidade, por menos fome, por mais saúde, por mais saber e conhecimento, por mais solidariedade? Até quando esta usurpação dos bens naturais dos seres que pensam?

 

04
Para onde foi levada nossa esperança? pergunto a mim mesma, diante da constatação, aparentemente pessimista, de Carlos Nejar: “Nossa é a miséria, / nossa é a inquietude incalculável, / nossa é a ânsia de mar e de náufragos, / onde nossas raízes se alimentam.” Sim, tudo isso é nosso e foi por nós criado e por nós consentido, respondo eu, em minha pequenez, ao poeta. E dou-lhe a palavra novamente, agora para um convite, que também faço meu:

“Chega a esta casa
sem prazo ou contrato.
Faze de pousada
as salas e quartos.
Entra nesta casa
que é tua e de todos.
Há muito deixada
aberta aos assombros.
Entra nesta casa
tão vasta que é o mundo,
pequena aos enganos,
perdida, encontrada.
Os dias, os anos
são palmos de nada.”

 

Maria Thereza Veloso