Uma Rosa para Rosa... Cem anos de ausência... Cem anos de resistente presença!
Autor: Michele Corrêa
“Liberdade somente para os partidários do governo, somente para os membros de um partido – por mais numerosos que sejam –, não é liberdade. Liberdade é sempre a liberdade de quem pensa de modo diferente. Não por fanatismo pela “justiça”, mas porque tudo quanto há de vivificante, salutar, purificador na liberdade política depende desse caráter essencial e deixa de ser eficaz quando a “liberdade” se torna privilégio”.
Rosa Luxemburgo, A Revolução Russa
Nascida em 5 de março de 1871 em Zamoṡc, pequena cidade polonesa então ocupada pela Rússia, Rosa foi a quinta filha de uma família judia emancipada e culta. Iniciou sua militância no movimento operário (ilegal) em Varsóvia, onde frequentou o liceu para moças, e antes dos dezoito anos teve de fugir por conta da perseguição política, refugiando-se na Suíça.
Em Zurique, estudou Ciências Naturais, Matemática, Direito e Economia Política, e com 22 anos fundou, com Leo Jogiches, Julian Marchlewski e Adolf Warski, a Social-Democracia do Reino da Polônia (SDKP). Em 1897 defende doutorado sobre desenvolvimento industrial da Polônia e um ano depois muda-se para Berlim, onde passa a militar na socialdemocracia alemã (SPD).
Ganhou projeção neste meio marxista alemão em 1899, com a publicação de um ensaio contra o teórico socialista Eduardo Bernstein, amigo pessoal de Engels e executor do testamento de Marx, intitulado “Reforma social ou revolução? ”, neste artigo, até hoje bastante conhecido e difundido, Luxemburgo questiona os argumentos de que o capitalismo atingira um desenvolvimento tal que impediria crises e levaria a possibilidades de transformação meramente por iniciativas institucionais e pacíficas.
Durante dez anos, entre 1904 e 1914, Rosa Luxemburgo representou o partido socialdemocrata polonês e lituano, como passou a se chamar a entidade após 1900, no Bureau socialista internacional em Bruxelas. Em 1906 viajou clandestinamente para Varsóvia a fim de colaborar com a revolução russa iniciada um ano antes, e foi detida junto com Jogiches, passando quatro meses na prisão. Em sua volta à Berlim, sua defesa da greve de massas como instrumento contra o capitalismo já ocupava lugar central em suas intervenções políticas e teóricas.
Entre 1907 e 1914 foi professora da escola de quadros do partido socialdemocrata alemão, sendo deste período a elaboração de obras como A acumulação do capital (1913) e Introdução à economia política (1925). Juntamente com outros companheiros de partido, como Clara Zetkin e Karl Liebkbnecht, articula em 1914 o Grupo Internacional em protesto à aprovação de créditos de guerra por parte da socialdemocracia, convertida aos esforços militares e nacionalistas do período. Em 1918 o grupo passaria a se chamar Liga Spartakus, organização que encabeçaria uma tentativa de revolução na Alemanha.
Acusada de agitação antimilitarista, Luxemburgo ficou presa durante um ano entre 1915 e 1916 e por mais alguns meses logo em seguida. Na prisão escreveu A crise da socialdemocracia (1916) e A Revolução Russa, na qual se contrapõe a alguns aspectos dos bolcheviques russos dos quais ela discordava. Foi libertada em 8 de novembro de 1918, no início da revolução alemã.
Na virada de 1918 para 1919 participa da fundação do Partido Comunista Alemão (KPD) e em janeiro deste ano é presa junto com Karl Liebknecht no que foi conhecido como a “insurreição de janeiro”. Ambos são assassinados em 15 de janeiro de 1919 por tropas do governo. Rosa Luxemburgo tinha 48 anos. No hotel Eden de Berlim, o soldado Runge destroça seu crânio e seu rosto a pontapés; outro militar, também a serviço do capitão Pabst, arremata com um tiro em sua nuca. Amarram seu corpo a sacos com pedras para que pese e não flutue, e jogam em um dos canais do rio Spree, perto da ponte Cornelius. Não aparecerá até duas semanas depois. O Governo do socialdemocrata Friedrich Ebert acabava assim com a vida de Rosa Luxemburgo, a mais importante dirigente marxista da história.
Minutos antes, os mesmos personagens tinham assassinado o principal companheiro de Luxemburgo em sua longa trajetória. Karl Liebknecht — único parlamentar que em primeira instância (1914) votou no Reichstag (Parlamento) contra os créditos de guerra para financiar a presença da Alemanha na Primeira Guerra Mundial — foi transferido para a prisão saindo do próprio hotel, mas antes de abandonar o local onde tinha sido interrogado lhe deram dois chutes que o deixaram aturdido e desmaiou; arrastado a um carro, é transportado ao Tiergarten, o grande parque de Berlim, onde é eliminado a sangue frio com tiros de pistola e abandonado no chão até ser encontrado. “Tentativa de fuga”, dirá a nota oficial; a de Luxemburgo trará: “Linchada pelas massas”.
Desde 1990, no segundo domingo de janeiro, realiza-se em Berlim um desfile silencioso em memória de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht; para muitos que chegam de perto e de longe, o luto pelas duas vítimas do terror branco mescla-se com o luto pelo fracasso da esquerda no século XX, mas também, para um número não tão pequeno, pela perda do antigo poder.
Na cidade dividida entre 1948 e 1989, onde em 1919 ocorreu o assassinato, encontram-se mais monumentos dedicados a Rosa Luxemburgo do que a qualquer outra personalidade – contudo, durante muito tempo, não na praça que leva seu nome: Praça Rosa Luxemburgo, onde desde 1914 se ergue o Volksbühne [Teatro do Povo]. A primeira tentativa de construir ali um monumento foi impedida em 1951 pela direção do Partido Socialista Unificado da Alemanha.
Somente em 2006 se colocou na praça um símbolo em memória de Rosa Luxemburgo. Respeitando sem dúvida a maneira como ela via a si mesma, não se queria colocá-la num pedestal, ainda que nesse lugar incomodasse menos. Em vez disso, foram inseridas no solo cem frases suas em letras de metal. Nunca saberemos se Rosa Luxemburgo não teria dado boas gargalhadas ao ver suas afirmações fundidas em bronze para a eternidade. Mas não se trata aqui de denunciar o gesto em si.
Seus adversários, tanto os do próprio campo quanto os do campo inimigo, não perderam o medo da pequena mulher, nem sequer depois de ela estar morta. Os nazistas, já em 1933, fizeram retirar a estrela vermelha do monumento à revolução, projetado por Mies van der Rohe, que estava ao lado dos túmulos de Rosa Luxemburgo e de Karl Liebknecht em Berlin-Friedrichsfelde. Em 1935, o monumento foi totalmente demolido, assim como os túmulos. As lápides estão hoje em um museu.
“Naquela época [janeiro de 1919], participei de um comício no qual Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo falaram. Fiquei com a impressão de que eram os líderes intelectuais da revolução e decidi mandar matá-los. Por ordem minha os dois foram capturados. Era preciso tomar a decisão de rejeitar o ponto de vista do direito […]. A decisão de eliminar os dois não foi fácil para mim […]. Ademais, também defendo a ideia de que essa decisão, inclusive do ponto de vista moral e teológico, é totalmente justificável. ”
Capitão Waldemar Pabst, 1962
Os inimigos de seu próprio campo tiveram que empregar muito mais energia. Em 1931, quando Stalin começou a “depurar” o movimento operário e a ideia do socialismo de qualquer traço de democracia, substituindo-a pelo “centralismo democrático”, um eufemismo para o sistema stalinista de obediência cega, Rosa Luxemburgo recebeu uma homenagem particularmente curiosa. Stalin lembrou-se de um construto que havia sido criado por um de seus antigos concorrentes, o presidente da Internacional Comunista 26 Grigori Zinoviev – o luxemburguismo.
O legado de Rosa Luxemburgo, o que a fazia tão perigosa para o stalinismo em ascensão, não era de modo algum um sistema teórico, e sim suas posições políticas: sua implacável exigência de democracia e de vida pública no campo da esquerda, assim como sua incorruptível insistência na liberdade como condição fundamental para qualquer movimento emancipador. E, como tal coisa dificilmente poderia ser contestada, precisava-se fabricar um sistema teórico, e daí os ideólogos de Stalin atuaram de fato com conhecimento de causa e minucia.
Eles examinaram os escritos de Lenin e de Rosa Luxemburgo atrás de declarações sobre os mais variados temas, filtraram as diferenças e, canonizando os textos de Lenin, proclamaram como “erros” todas as opiniões divergentes de Rosa Luxemburgo. Em uma última operação, esses “erros” foram sistematizados. O “luxemburguismo”estava pronto. O ataque contra o “modelo utópico e semimenchevique” de Rosa Luxemburgo foi executado quando a Internacional Comunista estava quase completamente amordaçada e ninguém mais ousava protestar.
O sapato
“Em 1919 a revolucionária Rosa Luxemburgo foi assassinada em Berlim. Os assassinos a arrebentaram a coronhadas de fuzil e a jogaram nas águas de um canal. No caminho ela perdeu um sapato. Alguém recolheu esse sapato, jogado na lama. Rosa queria um mundo onde a justiça não fosse sacrificada em nome da liberdade, nem a liberdade, sacrificada em nome da justiça. A cada dia alguém recolhe essa bandeira. Jogada na lama, como o sapato”.
Eduardo Galeano
Os filhos dos dias [Los hijos de los dias, 2012]
Referências:
https://rosaluxspba.org/rosa-luxemburgo/
https://rosaluxspba.org/wp-content/uploads/2015/05/Rosa-Luxemburgo_versao-web.pdf
https://brasil.elpais.com/brasil/2019/01/11/cultura/1547209310_525215.html
Michele Corrêa
Graduanda em Filosofia na UFPel,
Assessora da Pastoral da Juventude (PJ) e
Militante do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA).