Comunidades lutam contra precarização de escolas em assentamentos do RS
Por: Catiana Medeiros
Pais, professores e diretores de instituições de ensino da região da Campanha se mobilizam para garantir aos estudantes o direito à educação pública
Representantes de duas escolas localizadas em áreas de Reforma Agrária em Hulha Negra, na região da Campanha do Rio Grande do Sul, participaram nesta terça-feira (19) de reunião da Comissão de Educação da Assembleia Legislativa gaúcha. O objetivo foi levar a parlamentares a preocupação com medidas do governo do estado que comprometem as atividades da Escola Estadual de Ensino Fundamental Chico Mendes, no Assentamento Santa Elmira, e da Escola Estadual de Ensino Médio 15 de Junho, no Assentamento Conquista da Fronteira.
Além de deputados integrantes da comissão, que é presidida por Sofia Cavedon (PT), a agenda reuniu dirigentes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), pais, professores e diretores das escolas, que viajaram mais de 400 quilômetros até a Capital para exigir uma solução imediata a problemas. A secretária-adjunta da Secretaria Estadual de Educação (Seduc), Ivana Genrro Flores, também participou da atividade, realizada no Espaço de Convergência do Fórum Democrático de Desenvolvimento Regional Deputado Adão Pretto.
Representantes das escolas expuseram as preocupações que têm colocado em alerta e mobilização a comunidade hulha-negrense. Em abril do ano passado, 20 anos depois de ter sido aprovada a Educação do Campo como política pública nacional, o Conselho Estadual de Educação aprovou as diretrizes para Educação do Campo no RS. Elas orientam o funcionamento próprio para atender as necessidades da comunidade, a fim de que professores possam atuar dentro de suas áreas de conhecimento, ampliando assim sua capacidade de atuação dentro da escola. Porém, há uma orientação do governo do estado para que os professores atuem somente em suas áreas de formação especifica disciplinar. No entanto, no campo essa prática é inviabilizada pelo difícil acesso e distância entre as escolas, o que impossibilita ao profissional estar lotado em mais de uma escola e ensinar mais de uma componente curricular.
Outro problema enfrentado pelas escolas de assentamentos em Hulha Negra é a ameaça de desligamento de professores contratados temporariamente, uma vez que entrou em vigor no início de 2019 uma nova legislação estadual que rompe esses contratos ao final de cada ano letivo. Assim, se faz necessário que os professores sejam contratados anualmente de forma emergencial. Conforme Daniel Piovesan, do setor de educação do MST, essa medida afeta a comunidade local, pois se trata de professores dos assentamentos que se formaram para trabalhar naquelas escolas e mantê-las ativas. “Eles não terão garantia de que os seus contratos serão renovados, o que também pode gerar uma ruptura de trabalhos fundamentais que já são realizados há anos nas escolas”, explica.
Os representantes das escolas Chico Mendes e 15 de Junho também estão preocupados com conversas na região sobre o avanço da municipalização e da realidade imposta por meio da multiseriação nos anos iniciais, que não está respeitando a legislação. Como consequência, ocorre superlotação das salas de aula e comprometimento da qualidade do ensino e aprendizagem. Além disso, há falta de monitores para estudantes com necessidades especiais.
O que diz o governo do estado
A secretária-adjunta garantiu que não há nenhum encaminhamento referente à municipalização das escolas no atual governo e que nenhuma decisão será tomada de “cima para baixo”. Para isso, se comprometeu a analisar cada caso e estabelecer constante diálogo com a comunidade escolar para tratar de assuntos que dizem respeito às instituições de ensino.
“É uma situação difícil, não tem viabilidade”
A Escola Estadual de Ensino Fundamental Chico Mendes está em funcionamento desde 1989. Hoje atende estudantes do 1º ao 7º ano nos turnos da manhã e tarde. À noite, as aulas são voltadas à Educação de Jovens e Adultos (EJA). A instituição conta com 63 educandos, oriundos de 11 assentamentos de Hulha Negra e localidades vizinhas, e cinco professores, sendo que três são assentados.
Segundo o diretor Mariano Gasso, a escola iniciou suas atividades em prédios provisórios e até hoje se mantém na mesma estrutura. Ele diz que a falta de professores para atender as demandas da comunidade sempre foi um problema desde a fundação, uma vez que não havia profissionais da educação nos assentamentos. Isso se agravava pela distância de cerca de 80 quilômetros da cidade de Bagé, também na Campanha gaúcha, até o Assentamento Santa Elmira, e pela precariedade das estradas até a escola.
Mas a luta pelo direito à educação fez com que os assentados se organizassem para tornar possível a formação de seus próprios professores. Muitos deles se desafiaram e voltaram a estudar, fizeram Magistério e cursos superiores para poder atuar em escolas conquistadas a partir da Reforma Agrária. “Os professores trabalham na escola há mais de 20 anos através de contratos temporários. Foram eles que mantiveram o funcionamento, que garantiram a formação de centenas de alunos. Muitos desses alunos hoje também têm curso superior, o que significa que foi válida essa formação que as crianças tiveram, senão não teriam êxito em suas vidas escolares”, argumenta Gasso.
Conforme o diretor, a participação da comitiva de Hulha Negra na reunião da Comissão de Educação da AL, foi motivada pela iniciativa do governo estadual de suspender contratos e limitar a atuação dos professores em sala de aula. “Quem é formado em uma determinada área, que tem conhecimento em outras áreas, hoje também atua em disciplinas como ensino religioso, educação física e artes. Essa é uma forma de manter a escola ativa como nos últimos anos, pois não causaria o transtorno da falta de professores e não aumentaria o custo para o próprio Estado, pois não precisaria contratar mais professores. Mas o governo quer colocar cada um em sua área de formação. Isso elimina cargas horárias daqueles que por anos permaneceram, lutaram e mantiveram a nossa escola em pé. É uma situação difícil, que na prática não tem viabilidade em relação aos custos”, alega.
Gasso complementa que, nessa nova modalidade de contrato, os professores também não podem atuar em áreas de projetos. Isso comprometeria iniciativas de recuperação e preservação de nascentes do Pampa gaúcho, que são desenvolvidas pela Chico Mendes em parceria o Instituto Cultural Padre Josimo e a Pampa Sul. Recentemente, o projeto intitulado “Protegendo as Águas do Pampa”, conquistou o segundo lugar na categoria de Ensino Fundamental da 3ª Mostra Pedagógica do Centro dos Professores do Estado do RS (Cpers). Além disso, os profissionais estariam impedidos de atuar na supervisão e orientação educacional, o que, na avaliação da comunidade, prejudicaria muito o funcionamento da escola.
Diante dessa situação, a reivindicação aos deputados e à secretária-adjunta de Educação é que os dois poderes se mobilizem para garantir o atual quadro de professores sem que haja corte de horas, bem como o fim da multiseriação dos 1º, 2º e 3º anos, que juntos contam com 27 estudantes – número maior do que o permitido pela legislação. Essas turmas estudam numa única sala e recebem o atendimento de um único professor.
“O professor vai ter que pagar para trabalhar”
O primeiro dia de aula na Escola Estadual de Ensino Médio 15 de Junho foi em 1º de agosto de 1999, 45 dias após a chegada das famílias Sem Terra ao Assentamento Conquista da Fronteira, em Hulha Negra. Por lá, o início não foi muito diferente da Escola Chico Mendes, pois também se enfrentava a falta de professores. A 15 de Junho começou as suas atividades com três docentes, que davam aulas para turmas da 1ª a 5ª série. Hoje, há 187 estudantes de 13 assentamentos, e 18 educadores e funcionários.
Conforme o diretor Erni de Picoli, a escola está situada a 26 quilômetros da cidade de Hulha Negra. Apesar da distância, não é contemplada por linha regular de ônibus. Isso deixa a instituição, que funciona nos três turnos, em uma situação de isolamento. “Mesmo quando tinha transporte, ele não funcionava de acordo com os horários da escola. Então sempre tivemos dificuldades para suprir a questão dos professores. Alguns moram nos assentamentos, outros vêm da cidade e moram durante a semana numa casa de professores que é bancada pelos assentados”, relata.
Picoli comenta que a preocupação da comunidade escolar também é pelo fato de que os professores de currículo hoje não podem lecionar em outras áreas, conforme determinação da Secretaria Estadual de Planejamento. “Tem professores que há muito tempo trabalham com artes, ensino religioso e outras disciplinas de pouca carga horária. Eles não têm habilitação de diploma em outras áreas, mas têm capacidade para trabalhar. Acontece que o Estado está querendo tirá-los de sala de aula, e permitir que atuem somente na sua área de contrato. Um professor que vem de uma distância de 80 quilômetros diariamente, para dar 6 horas de aula semanais, vai pagar para trabalhar. Isso é inviável”, justifica.
O diretor explica que essa regularização dos contratos também traz prejuízos a projetos que a escola conquistou, como o Novo Mais Educação, uma vez que esses profissionais não podem assumir cargos específicos, nem ajudar a desempenhar o programa. “Temos a sala de recursos para trabalhar com os alunos especiais. Temos professora com titulação para a sala, mas ela tem um contrato para currículo. De acordo com a orientação do Estado, ela não vai poder trabalhar, terá que ser exonerada”, lamenta.
Picoli aponta que, ainda conforme a iniciativa do governo de enxugar o quadro de trabalhadores da educação nas escolas, a 15 de Junho não conseguiria chegar nem até a metade da carga horária necessária para atender às turmas nos três turnos. “Para o Ensino Fundamental, nós precisamos de 100 horas semanais, vamos ter 48. No Ensino Médio, precisamos de 75 horas semanais, vamos ter 27. Na EJA séries finais, nós precisamos de 50 horas semanais, vamos ter 16”, complementa.
Segundo ele, entre as principais consequências que essas medidas podem causar está a possibilidade de fechamento da escola. “Os professores dificilmente virão da cidade por menos de 20 ou 40 horas semanais, porque menos que isso fica inviável economicamente. A nossa realidade local é diferente da urbana, pois não permite que o educador trabalhe algumas horas lá e outras horas do dia em outra escola em função da distância. Infelizmente, não vai ter professor para atender nossos alunos”, alerta.
Na reunião na Assembleia Legislativa, em nome da comunidade escolar da 15 de Junho, o diretor reivindicou que o Estado considere a realidade em que a instituição está inserida e que “olhe com carinho” para as escolas do campo. “Queremos que o governo considere que essa orientação, dada para todo o estado, é muito difícil de ser aplicada à realidade do campo. Pedimos que haja uma contra orientação para garantir que a escola funcione em sua integralidade. Se não revertermos isso, a partir da semana que vem só teremos condições de atender estudantes do 1º ao 5ª ano”, finaliza.
Por Catiana de Medeiros
Da Página do MST