|ESPECIAL| A semente do MST: 40 anos da ocupação Macali e Brilhante


Confira a reportagem especial da jornalista Maiara Raubert, para a Página do MST, abordando os 40 anos da ocupação das fazendas Macali e Brilhante, na região de Sarandi, RS. A ação praticada por camponeses sem-terra em 1979 é considerada um marco na luta pela Reforma Agrária e dela deriva a gênese do MST.


Camponeses sem-terra foram homenageados em monumento na
Encruzilhada Natalino (Foto: Catiana de Medeiros)

Parte 1: Ocupações Macali e Brilhante marcam o recomeço da luta pela terra no Brasil, ainda em tempos de ditadura militar.

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A história das ocupações que marcou a reforma agrária no Rio Grande do Sul inicia quase vinte anos antes da ocupação Macali e Brilhante. Na Fazenda Sarandi, em 1962, na região norte do estado, houve a primeira ocupação por integrantes do Movimento dos Agricultores Sem Terra (Master). As ações realizadas por esse movimento tinham como objetivo organizar acampamentos ao lado de áreas que queriam ver desapropriadas. Geralmente eram terras públicas ou ainda terras particulares, as quais não possuíam comprovação de posse ou eram improdutivas.

Na época, o Master foi apoiado pelo então governador do estado, Leonel Brizola (PTB). No mesmo ano, Brizola implementou o Programa de Projetos Especiais de Reforma Agrária e Desenvolvimento Econômico-Social e criou o Instituto Gaúcho de Reforma Agrária (Igra). Ambos tinham o intuito de organizar cooperativas, comunidades de pequenos e médios agricultores e promover a democratização da propriedade da terra. No entanto, com a derrota do governador Brizola e o inicio da ditadura militar no Brasil, muitos foram expulsos daquele local. 

Além disso, muitas famílias Sem Terra, ainda na década de 60, ocuparam reservas indígenas em Nonoai, também na região Norte, estimuladas pela Fundação Nacional do Índio (Funai). Depois de quase duas décadas, essas famílias já se somavam em aproximadamente 1200. Em maio de 1978, com o apoio do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), os índios caingangues expulsaram esse grupo de pessoas de suas terras.

Diante do ocorrido, o governo gaúcho iniciou, junto com o governo federal, um processo de transferência desses Sem Terra. Algumas famílias aceitaram fazer parte do processo de colonização no Mato Grosso. No entanto, cerca de 500 delas optaram por não sair do estado.

Parte dessas famílias passaram a acampar nas proximidades da reserva indígena, no município de Nonoai, em Planalto e em Três Palmeiras. Outras, porém, foram deslocadas para o Parque de Exposições de Esteio, na região Metropolitana de Porto Alegre, as quais após alguns meses foram assentadas em Bagé, na região da Campanha gaúcha.

O problema ainda não estava resolvido. De acordo com o economista e então servidor público pela Secretaria de Agricultura do RS, Nilton Pinho de Bem, a Central de Comandos Mecanizados de Apoio à Agricultura (Cemapa) ficou como responsável de prover soluções para essas famílias Sem Terra.

Uma passagem da Bíblia reiniciou a luta pela terra. Padre Arnildo Afonso Fritzen, de 76 anos, fez o que qualquer sacerdote da igreja católica faria: socorreu três famílias da chuva que estavam passando fome. Naquela noite, no início do ano de 1979, o padre leu um passagem da Bíblia que marcou e ainda marca a sua vida.

“O livro do Êxodo, no Capítulo 3, fala que na situação da escravidão do povo de Israel, lá no Egito. Deus diz: ‘eu vi a aflição do meu povo, eu desci até eles, vi os seus sofrimentos, vi quem os oprimia e decidi libertá-los da escravidão’. E aí manda Moisés negociar com o faraó para libertar esse povo da escravidão”, declamou padre Arnildo.

Na manhã seguinte, ele lê esse texto para as famílias. “Esse povo somos nós. Esses escravos aí somos nós, e Deus viu a nossa situação e decidiu tirar a nós dessa escravidão”, lembra com alegria a reação desses Sem Terra, e percebe que a Bíblia está no sangue, na vida do povo.

A partir disso, se questionam: “Quem é Moisés hoje? Moisés somos nós, o coletivo”, salientou o padre Arnildo. Depois essas famílias passaram a organizar o povo que tinha sido expulso das terras indígenas e que estavam nos municípios da volta.

Com o tempo organizaram assembleias, já com o auxilio de estudantes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e decidiram ir a Porto Alegre conversar com o governador Augusto Amaral de Souza (Arena). “Conseguiram agendar uma audiência. A turma reivindicou: nós queremos a terra lá na Macali e Brilhante, porque nós sabemos que é uma área do estado e que foi cedida para particulares, o que não é justo”, conta o padre.

“Fui eu que fui o chefão lá para falar com o governador Amaral de Souza. Na época a gente era meio receoso, porque era a ditadura”, afirma o assentado da Brilhante, Lucival Brachak. “O governo dizia que ia assentar a gente, e eu perguntava: quando?”, lembra.

Vendo que as promessas de solucionar o problema em 30 dias eram rasas, os camponeses e seus apoiadores passaram a enviar telegramas diariamente para o governador, cobrando-o. “Ele não resolveu nada, então numa nova reunião decidimos que iríamos ocupar”, pontua padre Arnildo.

Depois de algumas ocupações mal sucedidas, com o auxílio da Comissão Pastoral da Terra (CPT), de sindicatos, estudantes, servidores públicos da Secretaria de Agricultura, entre outras entidades, os camponeses passam a se organizar para a ocupação da Macali.

Ivaldo Gehlen, atualmente professor do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da UFRGS, em Porto Alegre, ressalta a importância da organização para a conquista da terra. Ele destaca que obviamente não haveria luta sem os pequenos agricultores, no entanto, deve ser lembrada a articulação feita pelas instituições e entidades que não visavam nenhum interesse, a não ser auxiliar os Sem Terra na busca pela terra e pela Reforma Agrária.

De acordo com Gehlen, essa equipe multidisciplinar, a qual ele estava incluso, foi fundamental para a luta. “Esse grupo se ocupou e começou a usar a sua experiência, seu conhecimento, e levou aos agricultores para ajudá-los a enxergarem as coisas como eram e para onde eventualmente poderiam caminhar”, enfatiza o sociólogo.

Após algumas reuniões com as lideranças camponesas Sem Terra, foi decidido ocupar a Fazenda Macali. A granja, que na época era considerada moderna e bem equipada, segundo Gehlen, produzia sementes de milho e trigo. No entanto, os proprietários possuíam um contrato irregular com o Estado, pois como eram terras públicas, essas não poderiam ser arrendadas. “Eles sabiam que estavam irregulares. Então não foi difícil tirar a Macali de lá de dentro. Foi só ocupar a terra e eles foram embora”, relembra.

Parte 2: 7 de setembro de 1979, a retomada da luta pela terra.

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No dia em que o povo brasileiro comemorava seus 157 anos de independência, um grupo de famílias iniciava a luta por sua própria conquista. Na noite anterior ao 7 de setembro de 1979, na estrada entre as fazendas Macali e Brilhante, em Ronda Alta, na região Norte do Rio Grande do Sul, 36 caminhões boiadeiros e veículos transportavam cerca de 110 famílias Sem Terra para que essas ocupassem a gleba Macali. “A estrada era de terra vermelha, levantava uma poeira enorme, e uma lua lindíssima clareava o caminho até a Macali”, lembra padre Arnildo, que à época ajudou a organizar as famílias.

A escolha desse dia não foi leviana. Se tratava da véspera de um feriado nacional, o que deixou as autoridades, militares e civis com suas atenções voltadas às festividades. Tal opção facilitou o processo de inserção na fazenda.

Outro fator que favoreceu o sucesso da ocupação naquela noite foi o mapeamento e a análise da estrada que levava ao local em que os Sem Terra ocupariam, ação que fora realizada anteriormente. A partir disso, os organizadores da operação puderam delimitar um esqueleto do local e identificar um espaço mais apropriado para o acampamento. Os ocupantes levaram em consideração tudo, o tempo levado de transição da cidade de Nonoai até Ronda Alta, e de lá até o acampamento. Também mapearam um ponto perto de água, elemento essencial para a permanência dos Sem Terra.

Alcides Souza e Oliveira comenta que um de seus vizinhos o chamou para a luta. Ele e outras pessoas se reuniram em um local previamente combinado, mesmo sem saber onde os levariam. “Chegou o caminhão que ia nos carregar, fomos sem saber onde que era. Quando chegamos ali embaixo, de madrugada, começamos a descarregar a mochila e a passar por cima de capim. Quando chegamos na veia de uma sanga, quem tinha machado foi derrubando árvores para nós passarmos o rio”, explica.

No dia 7, como forma de demarcar o sucesso da ocupação, os camponeses hastearam a bandeira do Brasil e realizaram a missa da independência, presidida pelo padre Arnildo. “Foi [tudo] muito animado, bastante canto. O povo gritava: povo unido jamais será vencido”, acrescenta o padre.

Seu Oliveira não esquece como foi o dia seguinte à ocupação. “No outro dia que nós estávamos no lado de cá, cada um começou a se conhecer. Fomos nos organizando e tirando as equipes, porque nós não tínhamos conhecimento da luta”, recorda.

Leir Ferreira, filha de Luiz Ferreira, relata a participação do seu pai, já falecido, nessa luta. “Foi um comerciante da Linha Progresso que soube a notícia da ocupação e foi avisar. Aí o meu pai foi, porque nós éramos muito pobres, nós perdemos tudo lá nas terras indígenas de Nonoai”, relata. Ela ainda lembra que no dia da ocupação, a única coisa que seu pai levou para se agasalhar foi um pano de malhar feijão.

Leir, que hoje é assentada na Macali, conta que foi para o acampamento em janeiro de 1980. “O meu pai levava comida até Ronda Alta, nas costas, para levar a nós na Linha Pinheiro”, destaca. Ela ainda conta que teve que trabalhar desde criança, pois como eram muito pobres, não tinha outro jeito.

Maria Osmarin Fernandes, remanescente das terras indígenas, fala das articulações para a ocupação da Macali. Ela lembra que seu marido esteve inserido em todo o processo e participou das discussões das comissões. Maria comenta que foi para o acampamento um mês depois da ocupação, pois tinha sua filha mais nova de apenas um ano.

Segundo Padre Arnildo, as camponesas foram fundamentais nessa luta. Quando as forças armadas foram desmanchar o acampamento, dias depois, as mulheres e crianças fizeram uma barreira, impedindo a ação dos militares. “Foi uma coisa fortíssima, mas foi uma decisão tão bonita, maravilhosa. E foi o que de fato trouxe a terra para o povo”, ressalta.

Após a consolidação da ocupação Macali, era importante divulgar a ação. Foi articulado um grupo de agricultores que se deslocou para a capital do estado, com o intuito de falar com a imprensa, com o governador Augusto Amaral de Souza (Arena) e deputados. Segundo Ivaldo Gehler, agrônomo e professor do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da UFRGS, na segunda-feira, dia 10 de setembro, os acampados começaram a visitar os meios de comunicação. “Fomos à Gaúcha, na Guaíba, e fomos muito bem recebidos. Era uma grande novidade, depois de tantos anos de repressão finalmente alguma coisa nova”, relata. O governador e alguns deputados também se encontraram com os acampados em sua passada por Porto Alegre.

O agrônomo recorda a expectativa gerada após o anúncio nas mídias. “A opinião pública passou a defender a ação. As próprias rádios e televisões começaram a anunciar como uma novidade boa, pois a sociedade viu a ocupação como o primeiro passo para o fim da ditadura. A sociedade precisava de democratização e voltar a se mobilizar, a ser protagonista da história”, diz Gehler.

Dias depois da ocupação da Macali, mais de 70 famílias ocuparam a gleba Brilhante. “Nós alugamos um caminhão que puxa cavalo e enchemos de gente. Ele largou nós com as trouxas nas costas e fomos atorando as valetas no escuro”, conta um dos líderes camponeses da ação, Lucival Brachak. “Demoramos para chegar lá. Era longe, de noite, no escuro, pulando cerca. Eram 10, 12 fios de arame cada cerca”, relata o Sem Terra. “A polícia veio e nós enfrentamos o coronel. Nós não saímos de lá”, recorda.

Nos meses seguintes, o número de famílias acampadas nas terras da Brilhante chegava a 150, segundo o agrônomo Gehlen. Inicialmente o governo escolheu ignorar essa segunda ocupação.  No entanto, com a pressão dos camponeses e a opinião pública, o poder público se viu obrigado a conceder terra, assistência social e alimentos.

Na gleba da Brilhante, o fato que auxiliou no reconhecimento da ocupação foi a colheita do milho, o qual foi distribuído para os acampados. “Foi um gesto importante do Estado, porque foi uma vitória deles, como que reconhecendo que aquela terra pertencia à sociedade do Rio Grande do Sul e não a um grande proprietário de terra”, menciona Gehlen. Ele conta ainda que, além disso, o dinheiro arrecadado com a venda do milho pelo antigo arrendatário da Fazenda Brilhante, Ary Dionísio Dalmolin, fora distribuído entre os acampados em forma de bens solicitados pelos Sem Terra.

Parte 3: Em 1979, Secretaria da Agricultura assessorava acampados da Macali e Brilhante.

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Ainda em tempos de ditadura, o acampamento Macali, em Ronda Alta, na região Norte do Rio Grande do Sul, foi uma das primeiras manifestações sociais em busca da retomada de direitos no estado gaúcho. Em 1979, a Central de Comandos Mecanizados de Apoio à Agricultura (Cemapa) se colocava como responsável pela assessoria de trabalhos sociais como a Reforma Agrária, segundo o agrônomo Luiz Fleck, coordenador das lavouras no acampamento.

“Em primeiro lugar, queríamos que aquela gente fosse assentada e tivesse capacidade de tocar a sua vida, que tivesse autonomia para desenvolver os seus projetos”, afirma Nilton Pinho de Bem, na ocasião coordenador do projeto da Reforma Agrária, vinculado ao Cemapa. Conforme o economista, o estado sempre buscava dar essa liberdade às famílias, para que pudessem construir seus projetos de vida.

Além disso, Pinho de Bem ressalta que o objetivo deles era mostrar tanto para o poder público, quanto para a sociedade, a viabilidade da Reforma Agrária, mesmo com recursos escassos.

Assim, após a consolidação do acampamento, logo no primeiro mês, os servidores da Secretaria da Agricultura iniciaram um planejamento que visava reconhecimento e oficialização de um assentamento de trabalhadores rurais. Segundo o economista, dentro desse projeto geral, o Rio Grande do Sul buscou implementar outros projetos de formação, capacitação, saúde, educação e produção. Os funcionários do estado tinham como tarefa dar assistência técnica para os camponeses acampados. “Fizemos a maior lavoura de feijão da América Latina. Tinha uns 400 hectares de soja e uns 300 hectares de milho”, lembra Pinho de Bem.

Fleck, que era responsável pela lavoura, foi o servidor que iniciou o processo de trabalho comunitário entre os acampados. “A experiência inicial desse ano de Macali foi muito bem sucedida no ponto de vista de implantação da lavoura”, recorda o agrônomo.

Gehlen relata que a discussão feita com os servidores públicos responsáveis pelo projeto na ocupação Macali era construir uma estrutura comunitária. A ideia era trabalhar o cooperativismo, implementar um comércio coletivo e um centro comunitário, além da escola. No entanto, os agricultores, em uma das reuniões de decisão, refutaram a ideia proposta pelos técnicos. “Comunidade é feita de capela, escola, talvez um campo de futebol e uma quadra de bocha”, conta Gehlen, sobre as exigências dos acampados.

A primeira ação realizada após a ocupação, já no primeiro mês, foi a organização e implantação de uma grande lavoura. Gehlen menciona a importância do apoio do governador Amaral de Souza e de outros políticos da época, pois permitiu o incentivo e auxilio institucional e técnico da Secretaria de Agricultura do estado.

Segundo Luiz Fleck, com a ajuda dos servidores, os Sem Terra conseguiram plantar cerca de 1.000 hectares. Na época, de acordo com o agrônomo, a tendência era o coletivo. “Então foi feita uma lavoura coletiva”, comenta. Juntamente com a criação da lavoura, era necessário ensinar os agricultores esse modelo de produção, pois muitos dos então acampados não sabiam lidar com aquela terra.

Lídia Souza e Oliveira, assentada na Macali, recorda que dividiu o barraco de lona com 4 senhoras, 10 homens e 17 crianças. O que marcou o primeiro ano de ocupação para ela foi o trabalho coletivo. “Fizemos um lavourão durante um ano, todas as famílias junto. Foi dividido os alimentos, a colheita”, conta.

Já seu esposo, Alcides Souza e Oliveira, fala sobre a dificuldade de inserção no comércio do município. “Para eles nos éramos uma tropa de vagabundo, que não tinha serventia para nada. Mas se olhar os municípios depois que surgiu os assentamentos aqui, vai ver o quanto se desenvolveram”, desabafa.

Para Leir Ferreira o que mais ficou na memória foram as organizações e as orações. “Nós rezávamos debaixo de uma árvore que tinha uma cruz. O padre Arnildo fazia missa. Era o que marcava para nós”, salienta.

Um ano depois da ocupação, ocorre o sorteio oficial de lotes entre os acampados. “Um momento marcante, que legitimou tudo o que estava acontecendo, foi o sorteio. Foi o primeiro assentamento no Brasil da Reforma Agrária depois do Brizola”, afirma Gehlen. No dia em questão, estavam presentes autoridades e o governador Amaral de Souza, o que fortaleceu a autenticação daquela luta, da Reforma Agrária.

Segundo a assentada Lídia, a ocupação Macali foi significativa. “A gente aprendeu muito como o padre Arnildo e a irmã Carminha. Hoje tem muitas cooperativas e associações funcionando em assentamentos graças à nossa luta, porque foi aqui que começou aquela organização bonita”, justifica. “Eu sinto orgulho de ser Sem Terra. Eu tenho orgulho de um barraco, porque eu já passei por uma fase dessas no acampamento. E agora tenho comida em abundância, tem terra, tem o porco, tem o gado. Para a gente comer, tem de tudo”, conclui.

Dormélio Franciozi conta que participou de todo o processo da segunda ocupação do mês de setembro, no dia 25, na gleba Brilhante. Aproximadamente 70 famílias organizaram-se em grupos com o padre Arnildo e João Pedro Stédile, que hoje integra a coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), entre outras lideranças para a ação. “Nós não tínhamos prática de nada, então eles nos auxiliaram para nos organizarmos”, recorda o assentado. Franciozi acrescenta ainda a importância da participação das mulheres nessa ocupação. “Foi a força delas que deu a vitória para luta”, pontua.

“Junto com as mulheres conseguimos a conquista dos nossos direito. Nós conseguimos o talão de produtor, conseguimos ser sujeitos da história”, enfatiza Juraci Machado da Silva, também assentada na Brilhante. Ela ainda cita outros direitos obtidos a partir da luta das mulheres e da terra. “A nossa luta sempre foi por dignidade e reconhecimento. Pelo fim da discriminação das mulheres, por salário justo, alimentos saudáveis, saúde, preservação da natureza e da água”, salienta.

Juntamente com os trabalhadores camponeses, o Sindicato dos Trabalhadores Rurais lutou pela conquista de um hospital em Ronda Alta. Saul Barbosa, após ganhar a presidência sindical em 1985, trabalhou para implantar um sistema de saúde para a classe. “Criamos um projeto que mudou o sistema mercantilista hospitalar da época. Transformamos em um programa de prevenção às doenças, de promoção à saúde que repercutiu em todo o Brasil, inclusive no exterior”, recorda.

Além disso, para Franciozi, os assentados, com sua luta pela Reforma Agrária, passaram a participar de iniciativas como o Programa de Crédito Especial para Reforma Agrária (Procera), Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) e Minha Casa, Minha Vida, entre outros.

Outro marco, conforme Juraci, foi a possibilidade de dar estudo para os filhos desses assentados. “A gente veio de um sofrimento, e achava que o bom para os filhos era dar estudo e que eles buscassem novos horizontes”, justifica a camponesa.

Para a filha de Juraci, Katiane Machado da Silva, com a luta de seus pais pela terra, ela pôde estudar na primeira escola do assentamento e passou a se inserir na luta fazendo o curso de graduação de Licenciatura em Educação no Campo: Pedagogia da Terra.

A professora ainda reforça a importância do MST como formador de sujeitos históricos. “A gente nunca perde as nossas raízes, que são a nossa história, que é a luta pela terra e o processo de ter consciência de onde a gente vem e para o que de fato o nosso conhecimento precisa servir. No meu caso, e no caso de muitas pessoas que são forjadas no MST e nas organizações sociais do campo, o nosso conhecimento deve servir para fazer com que mais pessoas se apropriem do que foi negado e que a gente possa avançar nessa tomada de consciência, se organizar para enfrentar os desafios atuais”, pontua.

Já para Teresinha Brachak, a maior conquista dela e de seu marido foi criar os filhos em terras de Reforma Agrária. “Eu tenho orgulho de dizer que eu criei seis filhos em cima dessa terra que eu ajudei a conquistar com sofrimento, embaixo de lona. No início não foi fácil, foi difícil, mas nada que deixasse a gente desanimar. Se não fosse esse pedacinho de chão nós não tínhamos as conquistas que nós temos hoje, de poder formar os filhos, de dar estudo”, argumenta.

Os seis filhos do casal Brachak tiveram a possibilidade de estudar. Dois deles, Marcelo e Mizael, concluíram o Ensino Médio. A única filha mulher, Magda, graduou-se em Ciências Contábeis. Já os outros três, Marcelo, Marciano e Marcio, formaram-se em Técnico Agropecuário, sendo que o último conquistou o diploma pela segunda turma especial de Medicina Veterinária, oferecido via Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) em parceria com a Universidade Federal de Pelotas (UFPel).

O que mais marcou na Brilhante, para Teresinha, foi a luta do coletivo. “Se não fosse a união das pessoas que entraram aqui naquele ano para conquistar um pedacinho de terra e criar os filhos, não daria certo. Nós tivemos uma força de vontade para ganhar essa terra, foi um sacrifício que a gente passou”, finaliza.

Parte 4: A notoriedade das ocupações Macali e Brilhante é histórica.

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A luta pela terra vem entrelaçada à Reforma Agrária. “Mudou a visão da sociedade brasileira sobre os agricultores, até sobre os Sem Terras. Quem ganhou a terra criou uma identidade de cidadania, sobretudo do ponto de vista social e político. As mulheres mudaram muito, se empoderaram” pontua Ivaldo Gehlen, agrônomo e professor do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

João Pedro Stédile, integrante da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), fala sobre a importância das lutas da Macali e Brilhante, em 1979, em Ronda Alta, na região norte gaúcha, para a Reforma Agrária. “Essas ocupações representaram a retomada da luta camponesa no estado, fazendo ligação com a luta histórica da região. Macali e Brilhante foram a ponte entre o pré-64 e a luta pós-ditadura militar. Foi o ressurgimento do movimento camponês sem o medo da repressão”, explica.

Conforme Maria Salete Campigotto, que participou do acampamento da Encruzilhada Natalino, também na região norte do estado, a retomada da luta pela terra nas ocupações Macali e Brilhante impulsionou novas lutas. “Nós bebemos nas fontes, como a Encruzilhada Natalino. Primeiro dos anos 60, depois da Fazenda Macali e Brilhante, e fomos também um esteio de luta pra poder criar o MST em 84”, salienta.

Assentada, Salete enfatiza o importante papel dessas duas primeiras ocupações. “A Macali e a Brilhante começam a abrir o caminho para o povo ir se organizando e lutando pela terra, lutando pela Reforma Agrária. Foi o pontapé inicial para ser o que somos hoje, no desgaste da ditadura militar”, afirma.

Isaías Vedovatto, também dirigente estadual do MST no Rio Grande do Sul, compactua com a perspectiva de Salete. “A ação da Macali e da Brilhante é um marco que sinaliza essa retomada do processo da luta pela terra no Brasil”, afirma.

Para Stédile, ninguém acreditava que, em épocas de ditadura, aquelas ocupações resultariam em um movimento mais amplo no RS e no Brasil. “Era a retomada da luta, pelo direito à terra, pelo direito a trabalhar na agricultura e contra as injustiças”, comenta.

Ele acrescenta que em todo país, entre 1979 e 1983, foram realizadas dezenas de ocupações de terra. “Os camponeses que atuaram na Macali e Brilhante foram pioneiros e deram o exemplo de que era possível lutar e conquistar a terra em plena ditadura. Isso animou muito mais camponeses a lutarem e vencerem”, destaca.

Além disso, pontua Salete, as ocupações Macali e a Brilhante têm uma importância histórica para o município de Ronda Alta em especial. “Por isso que a Encruzilhada Natalino também acontece nesse município. E isso ajuda a reforçar a luta pela terra, porque os nossos companheiros e companheiras, que já estavam assentados na Macali, foram o esteio da nossa luta, cedendo água, lenha e nos dando toda a solidariedade”, relata.

Lídia Souza e Oliveira lembra da relação dos camponeses da Macali com os acampados da Encruzilhada Natalino. “A nossa relação foi boa, porque eles não tinham experiência. Lá baixou a pesada [militares], porque eles não podiam nem fazer reunião. Então eles falavam para o pessoal aqui: precisamos nos reunir numa casa para nós debatermos as coisas. E a gente aceitava, arrumava um lugar. Até com alimentos a gente ajudava” recorda a assentada.

Devido a essas ações e a importância do recomeço da conquista da terra, será realizada uma festa em comemoração aos 40 anos das ocupações Macali e Brilhante. No dia 7 de setembro de 2019, as comunidades, juntamente com o MST, homenagearão as famílias que acamparam e os seus apoiadores.

O assentado na antiga Fazenda Annoni, Isaías Vedovatto, fala sobre a notoriedade das ocupações Macali e Brilhante e a necessidade de festejar esse dia. “Diante da conjuntura que a gente vive no país, com esse governo que está aí, essa comemoração tem a importância de tu voltar para trás e olhar na história pra poder agir, pra gente retomar, reanimar, pra seguir em frente em um processo de organização, de luta, de mobilização”, declara.

Vedovatto ainda destaca a atenção que deve ser dada a esse marco histórico. “Quando eu cortei a cerca pra entrar na Fazenda Annoni, eu não tinha noção do significado que tinha sido a Macali e a Brilhante. Hoje, olhando pra trás, é que a gente compreende isso, porque a gente se moveu a partir de uma necessidade, mas essa necessidade era sustentada por alguém que já tinha começado”, argumenta.

Ele acrescenta que a luta iniciada pelos acampados da Macali e Brilhante não só reiniciou a luta pela terra. “Foi um movimento que permitiu criar um conjunto de organizações no meio rural, como o Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), o Movimento Sindical Combativo (MSC), o MST, e mais tarde o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). Então ele é um marco que sinaliza essa retomada da luta camponesa no Brasil”, conta.

Ao olhar esses 40 anos, Vedovatto consegue ver as conquistas a partir dessa luta. “A gente construiu muita coisa, muito movimento político, muita consciência, muitas experiências. Desde as nossas experiências de como fazer luta, escola, cooperativas, produção, compreender a sociedade de modo geral, dos valores, dos sentimentos. A gente coloca o ser humano no centro da sociedade”, salienta. Para ele, a maior vitória que o Sem Terra conquista com o MST é a compreensão da sociedade.

Stédile destaca o legado deixado pelas ocupações Macali e Brilhante. “Acho que o principal legado é justamente a teimosia da luta. A coragem de lutar em tempos difíceis, ainda em ditadura, e da retomada de lutas massivas, com toda a família. Também foi muito importante as alianças que se construíram com a esquerda em geral, com os sindicatos, com as igrejas e com a sociedade. Nesse sentido, todas as lutas que deram origem ao MST foram construídas sobre a base da solidariedade social. O povo brasileiro garantiu a vitória e ajudou a construir o MST como um todo, o tempo todo”, finaliza.

Maiara Rauber

Jornalista (MST)