O que o apagão do Amapá diz sobre a privatização do setor elétrico no Brasil
Por: Cristiane Sampaio
Cristiane Sampaio / Brasil de Fato
Publicação original disponível AQUI!
Empresa privada não tinha transformador reserva e foi socorrida pela Eletrobras, estatal que Bolsonaro quer vender
A crise de abastecimento elétrico que se arrasta no estado do Amapá desde o último dia 3 fortaleceu, no país, o debate contrário à privatização do setor. A Gemini Energy, empresa estrangeira que atua nos 14 municípios amapaenses atingidos pelo apagão, é alvo de críticas de diferentes lados por conta da falta de equipamentos para solucionar prontamente o problema, surgido a partir de um incêndio que atingiu a subestação de Macapá.
Leia também: Amapá completa 8 dias de caos: falha no rodízio de energia, protestos e insegurança
Diante das emergências do momento, a estatal Eletrobras foi convocada para socorrer o estado por meio da Eletronorte, subsidiária que contratou unidades termoelétricas para reabastecer o estado. O cenário acabou dando musculatura ao movimento antiprivatista no país, que ganhou um reforço com as iniciativas do presidente do Congresso Nacional, Davi Alcolumbre (DEM-AP), diante do caos energético no Amapá.
Com base eleitoral no estado, o senador provocou a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) a fazer uma rígida apuração do ocorrido. No auge dos debates sobre o caso, ele chegou a defender que a empresa perca a concessão no Amapá e que a Eletrobras passe a controlar o parque elétrico da região. O senador também já vinha se mostrando contrário à venda da companhia pública e agora é apontado como um possível entrave ao projeto do governo Bolsonaro de vender a estatal.
Enquanto se fortalece uma divergência entre Alcolumbre e os condutores da agenda econômica da gestão – especialmente o ministro Paulo Guedes, defensor da política de privatização –, especialistas e segmentos populares fortalecem o grito contra a privatização da Eletrobras.
A estatal, que começou a ser fatiada e vendida durante o governo Temer (2016-2018), é alvo de um projeto de lei que está paralisado no Congresso desde o final de 2019 por enfrentar resistência de parlamentares. Tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado é grande a resistência em permitir que o Estado se desfaça da companhia.
Com tudo privado, quem resolve?
Pressionados pelas bases populares, os opositores projetam problemas como risco à soberania nacional, já que energia é considerada uma área-chave para o desenvolvimento econômico e social e a Eletrobras controla estações em regiões de fronteira do Brasil com países vizinhos. Outra consequência indicada é o aumento da conta de energia.
A piora do serviço também é um argumento sempre presente no debate, reforçado pelo diretor da Associação dos Engenheiros e Técnicos do Sistema Eletrobras (Aesel), Ikaro Chaves. “O que a gente tem visto, desde o princípio desse processo de privatização, ainda nos anos 1990, é que, invariavelmente, isso vem como precarização do serviço, aumento da tarifa.”
“O consumidor não ganhou nada com a privatização. Pelo contrário, perdeu. A gente tem visto vários estados onde se tem situações de calamidade pública praticamente”, aponta, ao citar os casos do Amapá e de Goiás.
Neste último, a venda da empresa pública que atuava na região tem levado a problemas recorrentes com o serviço no estado, com quedas de energia que chegam a durar dias em diferentes municípios, conforme o Brasil de Fato já denunciou em reportagem de dezembro de 2019.
“A experiência tem mostrado pra gente o quanto esse processo é danoso pro país e pro consumidor, principalmente. E agora vem a situação do Amapá, onde o abastecimento é feito pela iniciativa privada. País nenhum do mundo entrega todo o controle do seu sistema elétrico pra iniciativa privada – no nosso caso, principalmente estrangeiros, pra deixar claro”, acrescenta Chaves, ressaltando que o avanço do capital privado no setor compromete a segurança energética do país.
Amapá
No caso do Amapá, a companhia espanhola Isolux, que operava na região, havia entrado em recuperação judicial em 2016. Depois desse processo, a empresa mudou de nome e passou a atuar como Gemini Energy, sendo a responsável, desde janeiro de 2020, por 85,04% das linhas de transmissão da subestação em questão, enquanto 14,96% ficam a cargo da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam).
Em sua defesa, a companhia tem dito à imprensa que sua atuação tem sido no sentido de “estabilizar e reforçar a operação dos ativos”. Diz ainda que tem feito “vultosos investimentos” e que o retorno parcial da energia no Amapá nos últimos dias teria ocorrido por haver um “corpo técnico qualificado e pela rápida execução do plano de contingência” por parte da companhia e do grupo de trabalho governista envolvido na resolução da questão.
A Gemini afirma que as investigações sobre o colapso ocorrido no Amapá ainda estão em andamento, mas indica que a subestação de Macapá foi atingida por uma tempestade no dia 3, tendo incendiado na sequência. O incidente comprometeu os dois transformadores que estavam em operação no local. Um terceiro estava em manutenção havia meses e por isso não pôde ser utilizado de imediato para suprir o abastecimento na região.
Contradições
O contexto aguçou as críticas direcionadas ao serviço da iniciativa privada, chamando a atenção do país para as contradições do modelo, que é constantemente associado por atores políticos neoliberais a uma gestão mais eficiente das empresas.
Iury Paulino, da coordenação do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), entidade que acompanha a situação de comunidades vulneráveis no Amapá e no restante do país, afirma que o colapso no estado não surpreendeu o grupo.
“A privatização do setor elétrico sempre foi sinônimo de apagão. Veja o que aconteceu no início dos anos 2000, o período de maior avanço na privatização no setor e que resultou naquele apagão que atingiu todo o Brasil e no racionamento de energia. Então, o que acontece no Amapá não é novidade”, resgata.
Agora, diante da situação que ainda se arrasta no estado, onde a maior parte dos municípios ainda não teve o problema totalmente solucionado, o diretor técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), Fausto Augusto Junior, defende um freio na agenda privatista para evitar a venda da Eletrobras.
“O sistema Eletrobras segura hoje boa parte do sistema de transmissão no Brasil. O processo de privatização da era FHC vendeu as pontas de distribuição, inclusive ali no Amapá, mas a interligação de todo o sistema é feita pela estatal. Vamos imaginar que aconteça em Itaipu o que aconteceu no Amapá, por exemplo. Você apaga metade do Brasil. É bastante preocupante colocar na mão da iniciativa privada e deixar isso avançar.”
Edição: Rodrigo Chagas