O Símbolo Sepé Tiaraju


Frei Sérgio Antônio Görgen ofm*

Por ocasião da passagem do dia 07 de fevereiro de 2018, dia em que recordamos o assassinato de Sepé Tiaraju, trago à memória a história e a marca de um símbolo da luta pela soberania dos Povos, o Índio Guarani Sepé Tiaraju, hoje parte do Panteão da Pátria, Herói da Nação Brasileira. Recordá-lo em tempos de entreguismos e injustiças é reforçar a dignidade dos pobres e a luta em defesa da soberania do povo e da nação brasileira.

Sepé é o símbolo vivo das ruínas vivas, das gentes excluídas, pobres, exploradas, esquecidas, desprezadas, teimando em buscar seu lugar ao sol, em um pedaço de terra repartida, em um emprego digno, em uma infância decente, em uma velhice respeitada, em sua dignidade reconhecida. As ruínas de pedras estão em São Miguel das Missões. As ruínas de gente estão nas favelas, nos campos, nas fazendas, nas matas, nas cadeias, nas ruas, embaixo das pontes, nas fábricas, nas vilas, nos barracos de lonas pretas dos acampamentos, nas áreas indígenas, nas beiras de rios e nas beiras de estradas. E continuam vagando pelo sul da América grupos guaranis, herdeiros de etnia e de sangue dos massacrados em Caiboaté, o corpo muitas vezes cambaleante, mas o olhar sempre firme e fixo no horizonte, farejando e intuindo os sinais da utopia que não morre, de um dia chegar na terra sem males. Utopia tantas vezes crucificada, mas que sempre ressuscita do meio dos escombros.

As ruínas de pedras são visitadas, fotografadas, filmadas, admiradas, transformadas em patrimônio da humanidade.

As ruínas de gente são escondidas, negadas, ignoradas, difamadas, reprimidas, condenadas, desprezadas, temidas.

A catedral existe. Não há como negar a imponência daquelas paredes de pedra. É ponto turístico. Patrimônio cultural da humanidade.

Para muitos historiadores, Sepé não existe. É uma lenda. É fruto da imaginação popular. É criação da literatura.

Mas ambos povoam nossa memória e marcam presença em nosso imaginário social e em nosso inconsciente coletivo.

A catedral é memória visual repleta de beleza plástica.

Sepé é memória perigosa carregada de sonhos revolucionários.

Desenvolveu-se enorme habilidade em domesticar catedrais.

Utopias revolucionárias são indomesticáveis. Por isto, melhor transformar seus símbolos em lendas e desacreditá-los.

Ainda não se encarou de frente este nosso mal-estar civilizatório. Há no inconsciente coletivo de nossa sociedade um sentimento de culpa mal resolvido. Por isto, para muitos, é mais fácil dizer que Sepé é uma lenda do que reconhecer que só existimos por conta do assassinato de um projeto civilizatório infinitamente melhor que o nosso, pois mais justo e mais alegre. E que o nosso só pode ser construído sob as patas dos cavalos e o rastro dos canhões dos impérios de Portugal e Espanha pisoteando o sangue de Sepé e de sua gente, derramado em defesa de seu povo, de sua terra, de sua dignidade, de sua felicidade, de seu projeto civilizatório.

Na terra de todos, cravou-se o latifúndio. No trabalho feliz, cravou-se a escravidão e a exploração. Em vez de pão nas mesas de todos, luxo nas mesas de alguns, fome e miséria nos lares de muitos. Em vez de dignidade de todos, humilhação das grandes massas que precisam do favor alheio para sobreviver.

Sepé morreu lutando. O General português Gomes Freire venceu. A fúria expansionista dos impérios europeus, abençoados por uma Igreja aliada aos poderosos, fez sentir o peso de suas espadas. O massacre brutal destruiu milhares de lares e milhares de sonhos. Outro projeto de sociedade ganhava corpo. Sobre os destroços da civilização guarani plantaram-se os latifúndios das sesmarias, que fizeram crescer injustiças, desigualdades, ódios, dores e mortes. E este projeto, com as adaptações dos tempos, impera até nossos dias.

As ruínas de pedras são intocáveis e, como estão, permanecerão, se fielmente conservadas. São a prova visível da destruição promovida pelos impérios europeus. As últimas cenas da tragédia registram aventureiros bandidos, saqueando o que restou dos sete povos em busca dos pretensos tesouros enterrados dos jesuítas.

Estes sim, lenda.

As ruínas de gente podem continuar sendo ofendidas, pisadas, esquecidas, desprezadas, feridas, reprimidas, dilaceradas, destruídas, vilipendiadas, mas sempre conservarão a possibilidade de reerguer-se, superar-se, ressurgir, até chegar o dia em que o sonho deixe de sê-lo, e se transforme em realidade viva.

E o povo gaúcho e brasileiro, reencontrando-se com suas raízes mais profundas, cravadas no chão fértil da cantante civilização guarani, retome em suas mãos a construção do projeto de sociedade justa e feliz interrompido a canhonaços nas coxilhas de São Gabriel do Rio Grande do Sul no fatídico fevereiro de 1756.

Mas, de tempos em tempos, renasce e ressuscita das entranhas da terra, na organização e nas lutas dos pobres, na resistência popular, o sonho e o projeto de um mundo de irmãos, uma sociedade de iguais, uma terra de justiça, uma vida com dignidade.

*Frei da Ordem Franciscana, militante do Movimento dos Pequenos Agricultores e autor do livro “Trincheiras da Resistência Camponesa”.