A Campanha da Fraternidade nos parece trazer uma proposta de reflexão e ação vinculada a Encíclica Fratelli Tutti, do Papa Francisco. Ele aborda esse conceito de “amizade social” no texto. Essa relação existe mesmo? Qual os objetivos da CNBB em propor essa reflexão?
Dom Jaime: O objetivo da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil em propor uma reflexão em torno deste tema está bem expressa na própria apresentação do Texto-Base: trazer à fala as situações de inimizade que geram divisões, violência e destroem a dignidade dos filhos e filhas de Deus; buscar iluminar a partir do Evangelho do Crucificado-Ressuscitado o que nos une como família e resgata o sentido das relações humanas baseados no respeito e na reciprocidade do bem comum; indicar possíveis iniciativas em vista de uma mudança, não só pessoal, mas também comunitária e social (= con-versão!) em busca de uma sociedade mais amiga, justa, solidária e fraterna.
A Encíclica Fratelli Tutti, do Papa Francisco, é inspiradora neste itinerário quaresmal – mas não só! – proposto pela CNBB para todas as Igreja Particulares no Brasil. Há vários elementos na história recente do Brasil que encontram reflexo no texto do Santo Padre. Vale destacar o aprendizado coletivo de valorizar a ciência após o doloroso período de tempo da pandemia do Corona-virus (COVID-19), a importância da boa colaboração de setores da imprensa, a dedicação de tantos agentes públicos de saúde. Também não podemos esquecer a recente tensão alimentada por setores que desejaram – e talvez ainda desejem! – uma ruptura institucional, com suas consequências imprevisíveis. As tentativas, por exemplo, de cerceamento da liberdade são sempre perigosas! Não podemos jamais esquecer que liberdade é uma palavra relacional. Ser livre significa originariamente estar com amigos! Jesus mesmo denomina seus discípulos de ‘amigos’ (Jo 15,15). Cuidar e promover a comunidade, segundo as indicações da tradição cristã, é tarefa dos discípulos do Senhor, pois a comunidade é o lugar da liberdade pessoal. “É para a liberdade que Cristo vos libertou”(Gl 5,1).
Estamos passando por um prolongado período de muitas divergências entre as pessoas, brigas, inimizades, a sociedade parece cada vez mais dividida. Até mesmo na igreja notamos existir polarização de opiniões que levam a debates acalorados. Nesse sentido há um desafio grande para a Campanha da Fraternidade enfrentar. Na sua avaliação, a amizade social pode ser um caminho de volta para que valorizemos mais as semelhanças que nos aproximam como irmãos e irmãs em detrimento das diferenças que nos distanciam como adversários?
Dom Jaime: O respeito pelas diferenças marca o convívio social. Respeito, respeitar significa cultivar apreço, consideração, deferência. Isto não significa simplesmente concordar com a posição alheia, mas permite que o outro manifeste livremente sua posição desde que não cause dano aos demais membros da comunidade. Respeito requer reciprocidade! Cada ser humano é diferente! Daí a importância de algo que já os antigos tinham ciência: “conhece-te a ti mesmo”. Entramos aqui num âmbito delicado, pois o respeito pelas diferenças é limitado aos nossos próprios limites. Por isso, numa sociedade plural o respeito exige direitos sociais efetivos, leis que garantam a convivência pacífica e que promovam verdadeiramente o bem comum. Para que tal seja realidade, urge promover a tarefa ética da política e da educação.
Em nível eclesial é doloroso constatar ataques, críticas e suspeitas contra o magistério, e de forma particular contra o Papa, “princípio e fundamento perpétuo e visível de unidade” (LG 23). Há sinais de uma animosidade orquestrada que fere profundamente a comunhão e a unidade da própria Igreja. Neste sentido vale recordar qual a função do magistério: “A função do Magistério não é algo extrínseco à verdade cristã ou algo sobreposto à fé; pelo contrário, é algo que nasce da própria economia da fé, uma vez que o Magistério, no seu serviço à Palavra de Deus, é uma instituição positivamente desejado por Cristo como elemento constitutivo da Igreja. O serviço que o Magistério presta à verdade cristã é realizado em benefício de todo o Povo de Deus, que é chamado a ser introduzido na liberdade da verdade que Deus revelou em Cristo” (J. Ratzinger).
Tendo presente o que foi acima explicitado, creio que a Campanha da Fraternidade se propõe uma tarefa urgente e necessária: compreender as principais causas da atual mentalidade de oposição e conflito, geradora da incapacidade de ver nas outras pessoas um irmão e irmã; conscientizar sobre a necessidade de construir a unidade em meio à pluralidade, superando divisões e polarizações; estimular a espiritualidade, os processos, os hábitos e as estruturas de comunhão na Igreja e na sociedade.
Na passagem do Evangelho que motiva a CF, Jesus chama seus discípulos de amigos e não de servos. Como podemos trazer essa reflexão para os nossos dias?
Dom Jaime: Jesus nos considera amigos! Mesmo nas próprias situações de ambiguidade que podemos viver, Ele demonstra o seu amor gratuito e inegável. A amizade eleva, por assim dizer, a própria relação: respondendo ao amor com amor, nos tornamos como Deus! Somos de fato amigos de Jesus se respondemos ao seu amor agindo como ele agiu: “Por toda parte, ele andou fazendo o bem” (At 10,38), e “fazia bem todas as coisas” (Mc 7,37). Jesus não nos quer servos, mas amigos, iguais a Ele! Por isso, somos vocacionados a viver na liberdade de filhos amados. Ora, o mandamento do amor não é um mandamento que se acrescenta aos demais! Não! É o mandamento que inclui todos os demais!
Na Encíclica Fratelli Tutti, o Papa convida a fazer uma experiencia de “um amor que ultrapassa as barreiras da geografia e do espaço” (n.1). Ele também lança um desafio que de algum modo perpassa as indicações do Texto-Base da Campanha da Fraternidade: “O amor, o bem, a justiça e a solidariedade não se alcançam duma vez para sempre; hão de ser conquistados cada dia. Não é possível contentar-se com o que já se obteve no passado nem instalar-se a gozá-lo como se esta situação nos levasse a ignorar que muitos dos nossos irmãos ainda sofrem situações de injustiça que nos interpelam a todos” (n. 11). Estas indicações são preciosas, pois apontam para uma tarefa que deve perpassar a vida de todos os discípulos e discipulas do Crucificado-Ressuscitado. Trata-se de uma tarefa que sempre e de novo, isto é, sempre e de forma nova cada geração precisa realizar. Portanto, o tema proposto pela Campanha da Fraternidade não se esgota num tempo determinado – no caso, Quaresma de 2024! Ele marca, por assim dizer, o cotidiano de todos os batizados!
O senhor esteve recentemente no Vaticano. Como está a saúde do Papa Francisco? E seu ânimo para conduzir a Igreja em um tempo de tantas divergências e conflitos?
Dom Jaime: É sempre motivo de alegria poder encontrar o Bispo de Roma, sucessor do Apóstolo Pedro, garante da unidade da Igreja. Na pessoa do Papa encontramos a segurança da unidade, da comunhão, da atualidade do Magistério, atendendo às exigências do tempo presente, em vista de um futuro sempre mais marcado pelos valores do Evangelho, mesmo que em meio a divergências, oposições, críticas, dissensos… Isto sempre houve na Igreja! Ousaria dizer que tal realidade faz parte da vida ordinária da Igreja situada no tempo.
Papa Francisco é um homem de 87 anos; traz as marcas da idade avançada. No entanto, como ele mesmo afirma, ele conduz a Igreja com a cabeça, não com as pernas! Se as pernas estão frágeis, a mente está ótima! Ao mesmo tempo, vale salientar seu estado de espírito: sagaz, atento, perspicaz! Como não recordar seu sempre pedido de orações a seu favor – não contra! Isto também aponta para um espírito de humor saudável.