Reforma da Previdência: entrevista com Daisson Portanova
Na última segunda-feira (14/02), a Rede Soberania recebeu a visita de Daisson Portanova, jurista renomado e uma das maiores autoridades em Justiça Previdenciária no país. Como não poderia ser diferente, a pauta da conversa foi a Reforma da Previdência, cujo teor tem sido tratado em ritmo de urgência pelo governo federal e está causando temor aos trabalhadores devido o nível de ataques aos direitos que se poderá executar a partir da vontade dos novos gestores. Confira algumas perguntas e respostas entre os comunicador popular Luiz muller, o militante social Maister F. da Silva e o advogado Daisson Portanova.
Rede Soberania – A equipe econômica do governo está se preparando pra organizar uma nova proposta para o sistema previdenciário, que será apresentada ao presidente e posteriormente enviada ao congresso. Gostaríamos que explicasse como é o sistema previdenciário hoje e como pode ficar com a nova proposta.
Daisson Portanova – Vamos primeiro entender o que é o sistema de repartição, como nós vivemos hoje. Trata-se desta relação que envolve o estado, o trabalhador, o empresário e a sociedade a partir de contribuições diversas, impostos e outros tributos que estão fomentando e gerando a riqueza necessária para se proteger os 35 milhões de brasileiros inativos em função de aposentadoria, de invalidez, de doença temporária ou de morte. O princípio de solidariedade e repartição é construído por toda a sociedade, inclusive os empresários, o próprio estado, o trabalhador pela sua contribuição direta e a sociedade pelas contribuições indiretas. Esse é conceito de solidariedade e ele avançou muito a partir de 1988, quando nós ampliamos o que chamamos de seguridade social como uma proteção mais ampla, que trata de saúde, previdência e assistência social.
Esse é o sinônimo de estado de bem estar social, é a busca do modelo da social democracia mais evoluída que dá aos trabalhadores o alcance de toda a proteção no seu espectro mais objetivo, portanto, é a sociedade construindo uma relação onde nós temos mais de 10 benefícios a serem mantidos e protegidos para o trabalhador. O sistema vivido hoje não foi construído da noite pro dia e nem foi imposto, mas sim modelado há 200 anos. Isso se deu com os embates sociais entre capital e trabalho, os conflitos de classe entre trabalhadores no seu mais amplo aspecto e a sociedade com os interesses do capital ou da linha de produção. Principalmente depois da revolução industrial que se busca este ramo de proteção social.
Isto será o foco de debate e de transformação a partir desse governo que se diz um governo liberal que quer desregulamentar o estado brasileiro e a desregulamentação também passa pela proteção social. Temos que compreender que o sistema de proteção social é muito mais amplo do que se fala, ele abrange outros temas, como a assistência em saúde por exemplo, sendo financiado por toda a sociedade através de contribuição direta e indireta, gerando a construção do direito desta proteção social. É isto que em breve, se continuar o discurso e a lógica desse governo, será desmantelado e as consequências disso serão profundas, tanto do ponto de vista da previdência, quanto do ponto de vista da assistência, podendo obviamente gerar impactos na saúde em função da própria emenda do teto (de gastos).
O principal mote que o governo tem utilizado para justificar a reforma da previdência é o combate aos privilégios. Vamos falar um pouco sobre quem são os privilegiados e a idade mínima para a aposentadoria.
A seguridade social quando trata do sistema de previdência, trata dos trabalhadores da iniciativa privada. Para o trabalhador da iniciativa privada o teto está em R$ 5.600,00, mas muitas vezes não chega a esse patamar. Possivelmente seja elevado agora em função do aumento previsto. Esse sistema dos trabalhadores é um dos regimes, mas nós temos outros. Sobre os privilégios, muitas vezes são utilizados como forma de discurso sem a gente atentar como foram construídos os direitos.
Nós temos que separar as relações, de um lado os trabalhadores da iniciativa privada e do INSS que os rege e do outro os servidores públicos – onde se dividem em servidores estaduais, municipais, federais e distrito federal – e seus regimes de previdência próprios, assim como os servidores militares que também tem regime próprio. Eu não vou usar a palavra “privilégio”, vou usar e expressão “conquista de direito”. Por que se queremos viver numa sociedade democrática e avançar pra um estado de direito social, temos que respeitar essas relações.
No primeiro exemplo, vimos quando do processo de eleição do Collor, com a ideia da caça aos “marajás”, supostamente privilegiados. Existiam distorções? Claro que existiam e elas existem hoje. Essas distorções que estão dentro da lei podem se caracterizar como privilégios, mas dentro da legalidade. Então nós temos que transformar a partir dos conflitos e dos interesses da sociedade, estes equívocos normativos que desviam a finalidade do estado de direito.
Antes da década de 90 situações das mais incríveis aconteciam. Trabalhador que exercia um cargo de comissão, no poder Legislativo, Executivo ou Judiciário, por um ou dois dias, podia se aposentar naquele cargo em comissão sem nunca ter contribuído. Essa anomalia foi dissociada, foi distorcida. Até a década de 90 o servidor público não tinha obrigação de contribuir para o regime previdenciário por que ele não tinha fundo de garantia, não tinha determinadas condições do trabalhador da iniciativa privada. Como servidor público ele tinha outras garantias, como aposentadoria integral, estabilidade e aposentadoria após 30 ou 35 anos de atuação.
Nós não podemos dizer que há um déficit na previdência, por que o estado entendeu que aqueles servidores não precisavam contribuir. Ele não contribuiu por que a lei assim não o exigiu. Portanto poderíamos dizer que era um privilégio não ter contribuído, mas era dentro da legalidade. Talvez esse privilégio seja lido a luz do estado de hoje, mas isso não retira a legitimidade do passado.
O regime dos servidores do Exército é um regime diferenciado. Óbvio que tem a sua importância, as suas condições e óbvio que ele é distinto do regime dos servidores civis. Existem privilégios? Como é que o militar se aposenta com 45 anos? Por que ele começa a carreira talvez com 18 ou 20 anos. Se ele começa a carreira com 20 anos como soldado, passa 25 anos na caserna e se aposenta com 45, isto é direito, tá errado? Vamos transformá-lo, vamos discutir e eles deverão também serem incluídos na reforma.
Nós temos que entender que não há que se discutir o privilegio, há que se discutir a legalidade. Se o privilegio é a exceção à legalidade, aí é ilegal, é fraude e tem que ser combatido.
A ANFIP e o Senador Paulo Paim tem denunciado que dinheiro no caixa da seguridade social há, o que não há é uma boa gestão. Nós temos aí a desvinculação de receitas da união que retira 30% de parte desse bolo, ou seja, se o sistema de seguridade fosse deficitário, nós não tiraríamos 30% de um bolo que é deficitário. O sistema deve ser gerido e se estabelecer um novo impacto geracional no sistema de previdência do trabalhador do regime privado, ou seja, do INSS. Servidor público, não pode se aposentar se não tiver 35 anos de contribuição o homem e 30 a mulher, 60 anos de idade o homem e 55 a mulher, esses são os requisitos. Portanto, a aposentadoria por idade já existe no serviço público.
Não tem (a aposentadoria por idade) para os militares, para a polícia civil, para o médico, para o enfermeiro, para o auxiliar de enfermagem… São exceções à regra. Se essa regra está causando privilégios, nós vamos ter que discutir com a sociedade. O foco por se tratar de privilegio, muitas vezes se ataca o servidor público, por isso digo: nós temos que atacar os equívocos, nós podemos fazer a crítica. Veja o discurso desse governo: acabar com a justiça do trabalho, por que se gasta não sei quanto milhões com ela. Por que ninguém pensa em acabar com a justiça que julga a previdência, que gasta outros tantos milhões? Por que aí há um conflito claro entre capital e trabalho, então nós temos que fazer uma discussão do aspecto social, dessa amplitude que nós queremos de transformação da sociedade. Temos que entender que é um governo legítimo, eleito democraticamente e avisando que iria fazer profundas reformas. O nosso papel, o papel da sociedade organizada é o seguinte é expressar que queremos reforma sim, mas temos limites, não é uma reforma que se estabeleça a manu militare já que estamos praticamente em um governo militar, dizendo que tal situação é assim, ou será assim e não será de outra forma.
Ora nós sabemos que esta coesão de forças e a correlação vai passar pela sociedade, ela vai passar pelo trabalhador rural, que não é de forma alguma um privilegiado por que o que ele gera no país, a produção de riquezas e a segurança alimentar que ele gera é “N” vezes maior do que o custo social que ele tem. O custo social do trabalhador rual é muito ínfimo perto, por exemplo, da desoneração que querem fazer dos R$ 17 bilhões do FUNRURAL, para os grandes do agronegócio. O trabalhador rural não representa 10% disso no bojo da previdência, então nós temos que fazer sim uma crítica, uma discussão para sabermos qual previdência que queremos.
Sobre a capitalização. Como vai atingir a classe média?
Vou pegar o exemplo de uma capitalização que foi instituída pela OAB. A Ordem dos Advogados do Brasil tem um sistema de previdência instituído para complementar o sistema do INSS. Mas o que é o sistema de capitalização? Eu vou lá na OAB e digo: eu quero comprar um benefício de previdência para ganhar R$ 5 mil daqui 20 anos e nós vamos criar uma estrutura de cálculo para colocar valores, mês a mês, ou aportar uma quantia para daqui 20 anos ganhar R$ 5 mil. Mas o que eu comprei lá na OAB? Um plano de previdência e só o plano de previdência. Eu não comprei um plano de pensão, não comprei um plano de morte, não comprei um plano de acidente, não comprei um plano de invalidez temporária… Comprei um plano de capitalização para minha aposentadoria. Esse plano de capitalização vai me garantir o benefício daqui 20 anos no exemplo tratado, em um valor “X”, enquanto durar esse valor. Então eu tenho que saber nesta capitalização para onde vai o dinheiro, onde ele é investido, o custo que me sai, para verificar a cada período se este dinheiro está garantindo aquele futuro benefício de previdência.
A capitalização é a contratação de um Plano Gerador de Benefício Livre, ou um contrato de previdência como eu posso fazer em qualquer empresa previdência privada aberta. No sistema de repartição nós temos 10 ou 12 benefícios, é a sociedade protegendo não só o trabalhador, não só o empregado, mas o autônomo, o empresário, o micro, o pequeno, o médio, o grande de todas as mazelas. Na capitalização temos apenas a contratação de um único benefício e isso é fundamental que se diga. Portanto, quando se diz que é difícil fazer a transição do regime de repartição, para o regime de capitalização ou para esta contratação única, é por que nós temos que romper com toda essa estrutura de previdência que o Brasil tem hoje. Não basta dizer que a partir de hoje é capitalização. Você terá que contratar vários regimes de benefício.
Hoje se você quer uma aposentadoria de R$ 5 mil daqui 20 anos, você terá que investir em torno de R$ 400,00 a R$ 500,00 por mês. Quanto seria o custo de uma pensão por invalidez, de uma pensão por morte, de uma sequela? Isso tudo é protegido no sistema de repartição, que é o sistema global que nós temos vivido. No modelo privado, quando acaba o dinheiro da capitalização, daquilo que você reteve, acaba o beneficio: você salda o credito e não tem mais o que fazer, este é o risco da capitalização. Não sei se o governo vai fazer igual ao modelo privado, mas o pressuposto vindo de quem vem, tanto dos irmãos Weintraub quanto da outra linha de orientação que é lá do Banco Bozano, em todos eles a ideia é conta individual para riscos individuais, então cada risco tem que ser financiado, se você quer aposentadoria por invalidez, invista no risco invalidez.
Fale mais sobre o custo de transição.
Qual seria a lógica disso, ao governo afirmar que está criando estas contas, como será só o lastro da contribuição do trabalhador? Estou pressupondo. O custo social da transição vai ser pago pelo empresário, que não vai mais colocar dinheiro no regime de repartição, mas vai ficar mantendo o custo da solidariedade. Vai ser pego ainda pelo PIS/COFINS, pela contribuição sobre o lucro, também para manter a conta do outro lado. Ou seja tu vai criar contas individuais, mantendo todo o custo social de folha, produção, geração de riquezas para manter o outro lado. Não vai criar absolutamente nada de novo, só vai criar uma insegurança.
Nós temos também que entender que mesmo sendo geridos pela iniciativa privada, nós temos riscos: o Chile já nos mostrou isso. Mas eu não vou até o Chile, vocês conhecem a APLUB? Vocês sabem que a APLUB estava sob intervenção? Pois é. Não está mais. Por que já está em processo de liquidação. Estou tomando a liberdade de falar na Rede Soberania o que a Globo não fala: está quebrada. Por que o sistema de capitalização é inviável no Brasil. A Abril, que também está em processo de liquidação ou recuperação judicial, está levando junto seu fundo de previdência. Temos que fazer uma discussão muito profunda sobre isso, ter instrumentos de controle e ter assento nesta fiscalização direta. Temos que ter instrumentos de controle pra não investir em empresas podres e nós vimos que fundos de pensão que estão hoje com déficit ou com problema financeiro investiram em moeda podre.
Sobre a desvinculação do salário mínimo.
Ao meu entender se a reforma será com sistema de capitalização, obviamente que dirá que o sistema não terá garantia do salário mínimo. Ela vai garantir a proporcionalidade que você tiver de dinheiro. Se você poupou o suficiente para ter um salário mínimo, vai ganhar um salário mínimo. Mas isso não quer dizer que será um salário mínimo a vida toda. Se a tua rentabilidade cair, tu pode ganhar abaixo do salário mínimo. Obvio que se você investir em plantas econômicas boas e teve uma rentabilidade maior, poderá ganhar mais. Mas se essa plantas econômicas quebrarem, você quebra junto, que é o que está acontecendo com alguns setores de previdência privada e que não são divulgados pela grande mídia. A previdência só sobrevive (e o Chile é o maior exemplo disso), quando há solidariedade entre aqueles trabalhadores que estão no sistema, entre a riqueza do país (e é ele sim um transformador, um distribuidor de riquezas que aproxima aqueles que ganham mais daqueles que ganham menos) para ter uma renda mínima de subsistência mínima. Previdência social não é para dar lucro, ela tem que dar o mínimo de condição para o trabalhador que se retira do mercado de trabalho.