Seremos caliças escavadas pelo medo? (artigo de Tarso Genro)

26 de março de 2018

Tarso Genro (*)

A saga brasileira se assemelha hoje a do ex-operário Franz Biberkopf, tipo criado por Alfred Döblin, que no seu imponente “Berlin Alexanderplatz”, é o personagem recém saído da cadeia, que busca o caminho da recuperação e da reinserção na vida comum, o que o faz de forma infrutífera, face às novas adversidades que a vida lhe impõe. As trapalhadas do cotidiano, a situação política do país – corroído pelo rancor da derrota na Primeira Grande Guerra – o vírus latente do nazismo e uma situação econômica à beira da catástrofe, bloqueiam tudo que de bom poderia acontecer na vida de Franz.

Na saga brasileira, o ambiente político que já era putrefato – e se acentuou com a derrubada ilegal da presidenta Dilma e a seletividade de “exceção” contra Lula –  agora já se torna ódio, violência armada, agressões a mulheres indefesas, ocupação de estradas e apedrejamento de caravanas políticas. São atos  ilegais e tipicamente fascistas, que tentam bloquear a única saída à vista, para os impasses de hoje, que é a normalidade no pleito eleitoral de 18. Franz Biberkopf é o Brasil de hoje, à deriva, que quer se reinserir na vida democrática para curar-se do golpismo paraguaio e não consegue.

A comparação, desta ação organizada pela direita fascista com os movimentos sociais – feitas por jornalistas sequiosos para mostrar simpatia com os fascistas – não pode ser mais primitiva e manipulatória. Primeiro, porque quando os movimentos sociais se “excedem” – na visão de quem é encarregado de manter a ordem – eles são reprimidos pelo Estado, que detém o monopólio da força legítima. Tal particularidade torna o jogo de responsabilidades visível, pois nele as pessoas envolvidas -cidadãos integrantes do movimento e agentes públicos – “rendem contas” ao que fizeram, num devido processo legal. Segundo, porque estes atos de violência – inclusive cometidos por pessoas armadas – foram encetados diretamente contra Partido político, de forma articulada e conspirativa, numa dimensão de gravidade que jamais ocorrera, até hoje, no Rio Grande.

É certo que nem todas as pessoas que estavam nos “protestos” contra Lula, participaram da violência privada destinada a atacar, fisicamente, adversários políticos. Também nem todos os adversários do PT e da esquerda, apoiam espancamentos de mulheres, apedrejamento de ônibus e formação de milícias. O que aconteceu, todavia, aqui no RS – nesta última semana – vai deixar marcas profundas, que podem mudar radicalmente nosso ambiente político e envenenar, ainda mais, todo o país, se não tivermos investigações com resultados claros.

Não foram “confrontos”, como dizia generosamente boa parte da imprensa tradicional (para discretamente proteger os agressores), mas ataques feitos por uma facção política contra outra facção, que estava realizando um movimento legal, inclusive protegido pelas autoridades policiais, como faculta a Lei e a Constituição. A semelhança foi com as “blitz” que faziam as SA, nazistas, contra os judeus, socialdemocratas ou comunistas, no crepúsculo de Weimar, não com ações contra a legalidade, eventualmente realizadas por corporações públicas ou movimentos sociais.

O grau de fanatismo e insanidade destas pessoas ficou vários vezes claro, quando – por exemplo – acusaram a RBS de ser “comunista”, certamente porque seus controladores são integrantes de uma família judia – o que faz um claro elo dos ideólogos “educadores” do movimento com os originais hitlerianos do século passado – ou quando quiseram espancar uma jornalista desta empresa, que estava lá trabalhando para ganhar seu pão; ou ainda quando agrediram duas militantes do PT que portavam uma bandeira do Partido, sem nenhuma piedade e muita covardia. Ou, finalmente, quando jogavam paralelepípedos nos ônibus da Caravana, arriscando a vida do ex-Presidente e dos que o apoiam e o acompanhavam.

É importante que as forças políticas da esquerda, juntamente com os demais setores progressistas da sociedade, instituições democráticas da sociedade civil, intelectuais e humanistas de toda a ordem preparem, de comum acordo, um “dossiê” técnico: um relatório formal e isento – factual mesmo – sobre o que aconteceu nos últimos dias, aqui no Estado, passando – este documento – para instituições internacionais adequadas, para as autoridades superiores de Polícia, para Comissões pertinentes do Congresso, para as autoridades do Ministério Público, para que sustemos a violência golpista, que está se insinuando -agora- no cotidiano da política partidária de forma muito grave.

Comparemos nosso país com uma cidade para sentir, no fundo da nossa alma, os versos de Benedetti, para ajudar nossos filhos a escolherem onde não queremos viver:

Há cidades que são capitais de glória
e outras que são cidadelas de asco.

Há cidades que são capitais de audácia
e outras só caliças escavadas pelo medo.

 

(*) Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.