Tá faltando água no sul do sul (seca no bioma Pampa, parte 1)
17 de março de 2018
Primeira parte do relato do que vimos e dos testemunhos que colhemos em três dias de andanças pelo bioma Pampa
A seca é sempre um fantasma que tira o sono daqueles que tem sua vida e seu sustento atrelados ao cultivo da terra. Não faltam teorias para apontar causas. E causas são sempre polêmicas no debate. Deveríamos deter algumas linhas para falar da indústria que explora indiscriminadamente os recursos naturais, da agricultura extensiva que suga da terra sem devolver a vida que dela retira, ou talvez dos chamados desertos verdes que tomam o lugar da biodiversidade implantando florestas artificiais que bebem a água e a vida do solo, assim como poderíamos enumerar mais uma dezena de fatores aqui. Mas não vamos. Precisamos dar atenção para problemas imediatos que precisam ser sanados. Esse é o primeiro texto de uma série de quatro, colocando em pauta a região do bioma Pampa, que vem sendo torturada por uma estiagem que se estende desde outubro passado e parece não ter data certa para normalizar.
Acompanhando o que se veicula na grande imprensa ouvimos vozes de muita gente que se assusta com a quebra de uma grande lavoura de soja ou com o pasto seco para centenas de bovinos. Do lado de cá da narrativa encontramos mais gente do que terra, pequenos camponeses que para além de perder o pouco que tem para o próprio sustento, já sentem ralear a água de beber. Difícil imaginar, mas no sul do sul, já há quem precise ser acudido por caminhão pipa para ter água para dar aos filhos ou para colocar na panela e cozinhar. Realidade cuja história se conta pela voz cansada de gente que já está desistindo de ter esperança.
Nossa primeira parada, Canguçu. Nos acompanha o camponês Adilson Schuch, 47 anos, integrante da regional Sul e dirigente estadual do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA). “Aqui nós temos um ciclo curto de estiagem, mas que mesmo curto traz efeitos muito fortes para os camponeses”, explica. Depois de passar por pelo menos meia dúzia de pequenas sangas “atoradas” (termo utilizado para expressar que a água não está mais correndo), reforçou o relato explicando a questão da dificuldade de quem trabalha com a chamada pequena pecuária, ou seja, com algumas unidades de bovinos, ovinos ou caprinos. “Os reservatórios de água foram se esgotando, depois as pequenas sangas e cursos de água, obrigando a que se busque água para os animais nos cursos maiores”, conta ao mostrar o Arroio Sapato, considerado um dos principais percursos de água e que naquele dia estava já com menos de um quarto do volume de água normal. “O que acontece é que os animais vão sofrendo, vão perdendo peso, muita gente vai se desfazer para não ver o bicho sofrer, vendendo por muito menos do que vale”.
Cleison Alves Raulim , 16 anos, relata a rotina que sua família vem executando há mais de três meses, quando secou a cacimba de onde buscavam água. Hoje tem de contar com a o companheirismo de um vizinho, buscando água de um açude que ainda resiste na comunidade de Alto da Cruz. “A gente busca de galão, para poder tratar dos bichos, mas o açude lá já está ficando pouco, já está com menos da metade”, explica. O jovem, que estava em casa ajudando a cuidar dos afazeres interrompe a proza para atender o pedido da irmã menor, Tauani, 3 anos, que vem em busca de um copo d’água para se hidratar das artes praticadas no terreiro. A pequena sorri, alheia a realidade que lhe cerca, pois pouco mais de 300 metros adiante uma cacimba nova que recém foi aberta já demonstra que vai negar água aos Raulim. “Aqui em volta a planta tá toda perdida, não se salva mais nada”, emenda o jovem que evita falar sobre um fato que vai assustando cada vez mais os camponeses do pampa: dividir a mesma água que se busca para acudir os bichos, para matar a sede dos filhos.
Canguçu, assim como os municípios vizinhos e mais três dezenas de municípios gaúchos que se estendem desde as proximidades de Pelotas até além de Bagé, decretou situação de emergência, buscando algum tipo de socorro dos governos do estado e federal. Mas até nossa passagem por lá, nem notícia tinha chegado de volta da parte das instâncias de poder, quanto mais algum indicativo de que se pudesse, ao menos, amenizar o problema. A seca é resposta da natureza, não acontece por vontade política, mas poderia ser amenizada se quem exerce o poder de mando olhasse com mais solidariedade para o povo pequeno. Investimentos em programas de irrigação, em abertura de poços artesianos e até mesmo a antecipação de instâncias de crise com a implantação de reservatórios e cisternas poderiam ter feito muita gente pelo menos sofrer com menor intensidade os efeitos da estiagem nestes dias.
Na divisa de Canguçu com Cristal, altura do quinto distrito, Olavo de Ribeiro Crespo, 43 anos, olha com tristeza para o milho que não granou na espiga, enquanto caminha em direção ao final da lavoura onde vai trancar o passo em meio a um vão largo entremeado por terra seca e um resto de lama que indica que ali há tempo atrás havia um açude de bom porte. “A produção do leite caiu demais porque não tem pastagem nem água para os animais, na planta eu coloquei 70 quilos de milho e perdi tudo”, refletindo sobre a sua realidade e calculando que no entorno mais de 80% do plantio se perdeu. “´Hoje tem muita gente sofrendo por não ter água de beber, as sangas em volta estão tudo secando, o pessoal que tem investimento para pagar já está desesperado porque não vai ter o que fazer, é uma tristeza atrás da outra”, reflete. “A esperança a gente não pode perder nunca, mas tá faltando que alguém olhe pela gente”, concluiu o camponês que sobrevive com sua família em um município que se orgulha em afirmar como o de maior número de minifúndios na América Latina.
A “esperança” que Olavo evoca também vai temperar essa série de textos. Mas disso ainda não podemos falar. Tem mais coisa triste para ser colocada em pauta. A próxima parada será em Encruzilhada do Sul. Acompanhe na próxima matéria.
Marcos Antonio Corbari | Jornalista
Rede Soberania | Instituto Padre Josimo | MPA
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