Uma família fuzilada, retrato de um país esfacelado pela desumanidade
Autor: Michele Corrêa
“Sessenta por cento dos jovens de periferia sem antecedentes criminais
Já sofreram violência policial
A cada quatro pessoas mortas pela polícia, três são negras
Nas universidades brasileiras
Apenas dois por cento dos alunos são negros
A cada quatro horas, um jovem negro morre violentamente
Em São Paulo
Aqui quem fala é Primo Preto, mais um sobrevivente”
(Racionais Mc’s contou e cantou a realidade dos negros no Brasil em 1997 na música Capítulo 4, versículo 3*)
Todos os dias são comuns matérias nos noticiários de massacres perpetrados pelas forças de segurança brasileira, sejam elas policiais ou das forças armadas, excessos e chacinas não são novidade. A polícia brasileira é a que mais mata no mundo. A polícia do Rio, a que mais mata no Brasil. Na guerrilha urbana carioca, entre janeiro e outubro/2018 (dados do Instituto de Segurança Pública) foram 1.308 homicídios por intervenção legal (ou homicídios decorrentes de oposição à intervenção policial, ou autos de resistência, vários nomes, vários eufemismos para o mesmo fato). Quem mata, no Rio de Janeiro e em grande parte do país, são três atores sociais: o tráfico, a milícia e a polícia.
Os dados registrados na categoria intervenções legais e operações de guerra do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), assim como demonstrado nas edições anteriores do Atlas da Violência, permanecem com subnotificação significativa quando comparados aos dados policiais. Essa diferença não chega a surpreender, já que no momento de produção do registro de óbito o legista do Instituto Médico Legal (IML), ou o perito designado, possivelmente não conta com informações suficientes para indicar a autoria do homicídio, sendo estes casos muitas vezes classificados como morte por agressão. Já nos registros policiais, a autoria da morte violenta é crucial para o processo de investigação e apuração do caso, de modo que essa informação tende a ser objeto de atenção no momento que se registra a ocorrência. Além do mais, para o adequado controle de uso da força pelas polícias, é fundamental que esse procedimento seja feito com as adequadas designações sobre a licitude dos casos, o que também é função da autoridade policial.
Nesse sentido, a análise dos dados de mortes decorrentes de intervenções policiais apenas a partir dos registros do SIM pode levar a grandes equívocos ou distorções, já que a diferença entre as duas fontes supera 67,5%. Em 2016, o SIM registrou 1.374 casos de pessoas mortas em função de intervenções policiais, ao passo que os dados publicados no Anuário Brasileiro de Segurança Pública, com base nos registros policiais, estimam ao menos 4.222 vítimas nesse mesmo ano. As maiores distorções verificadas ocorreram no Pará, onde os registros policiais indicam 282 vítimas e apenas três no sistema de saúde. Em Sergipe, o SIM apontou uma vítima, enquanto os registros policiais indicam 94. No Rio Grande do Norte, o sistema de saúde aponta duas vítimas, e os registros policiais 65. Em Goiás, houve nove casos no sistema de saúde e 209 nos registros policiais.
Para além das diferenças metodológicas entre as duas fontes, o fato é que o uso da força pelos agentes estatais é um tema central para a democracia brasileira, já que frequentemente as polícias brasileiras têm sido acusadas de violações de direitos e de serem violentas, o que reforça a necessidade de registros fidedignos para mensuração do fenômeno. O paradoxo aqui é que, de um lado, é justamente a possibilidade de usar da força física que distingue os policiais do cidadão comum, desde que isso seja feito de forma legítima e dentro dos parâmetros de legalidade, necessidade e proporcionalidade, protegendo a sua vida e a de outro cidadão. Por outro lado, a fronteira entre o uso legítimo e ilegítimo da força letal é tênue e, por isso, as circunstâncias muitas vezes não são apuradas de forma adequada no Brasil, fazendo com que uma diversidade de casos, legítimos e ilegítimos, sejam contabilizados da mesma forma e com pouca transparência.
Assim a contabilização da mesma forma e com pouca transparência de casos “legítimos” e ilegítimos, de excessos e chacinas das forças de segurança revelam outro fator vital a democracia brasileira a seletividade racial da violência policial.
Uma das principais facetas da desigualdade racial no Brasil é a forte concentração de homicídios na população negra. Quando calculadas dentro de grupos populacionais de negros (pretos e pardos) e não negros (brancos, amarelos e indígenas), as taxas de homicídio revelam a magnitude da desigualdade. É como se, em relação à violência letal, negros e não negros vivessem em países completamente distintos. Em 2016, por exemplo, a taxa de homicídios de negros foi duas vezes e meia superior à de não negros (16,0% contra 40,2%). Em um período de uma década, entre 2006 e 2016, a taxa de homicídios de negros cresceu 23,1%. No mesmo período, a taxa entre os não negros teve uma redução de 6,8%. Cabe também comentar que a taxa de homicídios de mulheres negras foi 71% superior à de mulheres não negras.
Os dados trazidos pelo Atlas da Violência 2018 vêm complementar e atualizar o cenário de desigualdade racial em termos de violência letal no Brasil já descrito por outras publicações. É o caso do Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência, ano base 2015, que demonstrou que o risco de um jovem negro ser vítima de homicídio no Brasil é 2,7 vezes maior que o de um jovem branco. Já o Anuário Brasileiro de Segurança Pública analisou 5.896 boletins de ocorrência de mortes decorrentes de intervenções policiais entre 2015 e 2016, o que representa 78% do universo das mortes no período, e, ao descontar as vítimas cuja informação de raça/cor não estava disponível, identificou que 76,2% das vítimas de atuação da polícia são negras.
A conclusão é que a desigualdade racial no Brasil se expressa de modo cristalino no que se refere à violência letal e às políticas de segurança. Os negros, especialmente os homens jovens negros, são o perfil mais frequente do homicídio no Brasil, sendo muito mais vulneráveis à violência do que os jovens não negros. Por sua vez, os negros são também as principais vítimas da ação letal das polícias e o perfil predominante da população prisional do Brasil. Para que possamos reduzir a violência letal no país, é necessário que esses dados sejam levados em consideração e alvo de profunda reflexão. É com base em evidências como essas que políticas eficientes de prevenção da violência devem ser desenhadas e focalizadas, garantindo o efetivo direito à vida e à segurança da população negra no Brasil.
Nesse contexto que no último domingo (7), na Zona Norte do Rio de Janeiro, o carro de uma família foi alvejado por militares com mais de 80 tiros de fuzil. Os militares disseram que o veículo da família foi confundido com o carro de fuga de assaltantes, mas de acordo com as testemunhas não tinham atividades estranhas no local. No carro estavam cinco pessoas, entre elas, uma criança de 7 anos. O pai da família, Evaldo dos Santos Rosa, foi morto. Seu sogro foi baleado, mas está bem. O restante da família conseguiu sair do carro antes que os militares atirassem mais vezes. Segundo a viúva do músico, os militares caçoavam dela enquanto pedia ajuda. Uma amiga da família, que estava no carro, afirmou que os atiradores não sinalizaram antes de abrir fogo.
A família no carro era uma família negra indo fazer um programa dominical. Se fosse uma família branca o exército teria aberto fogo dessa forma? Os excessos das forças de segurança vitimam sempre as negras e negros, mas esse fato é ignorado…. Parece que as vidas negras valem hoje menos que valiam quando eram escravizadas. A tal abolição não permitiu que as negras e negros brasileiros fossem vistos como seres humanos, constituídos de dignidade. A sociedade brasileira tem dado demonstrações assustadoras de discriminação racial. A indiferença em relação ao assassinato do jovem Pedro Henrique Araújo, no supermercado Extra, em relação a comoção gerada pelo assassinato do cachorro em uma loja do Carrefour, assim como o crescente apoio a bbb Paula, participante racista do Big Brother 2019, forte candidata a ganhar o programa, o absurdo caso do imigrante colombiano, Espinosa Renteria, de 28 anos, que estava fazendo malabares em um semáforo da cidade de Vilhena, em Rondônia, para conseguir dinheiro e comprar comida, e sofreu uma tentativa de homicídio, após receber uma marmita com cacos de vidro de um homem que se aproximou dele e ofereceu o alimento, exemplificam o quão perigoso o Brasil se tornou a população negra.
Ecoa a pergunta: Vidas negras importam? Não há revolta, não há indignação…. Apenas um silêncio assassino pairando sobre a cabeça da negritude brasileira!
Referências:
Michele Correa
Graduanda em Filosofia na UFPel, Feminista Negra, Assessora da Pastoral da Juventude (PJ)
e Militante do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA)
* No trecho em que diz que “três em quatro pessoas” que são mortas por forças de segurança são negras, surpreendentemente continuam os mesmos! O Fórum Brasileiro de Segurança Pública concluiu que 75% das intervenções policiais acontecidas em 2015 e 2016 terminou com a morte de negros (pardos e pretos), ou seja, 3 em 4 dos casos, exatamente como na música.