A austeridade e a falência das democracias

24 de setembro de 2019
Autor: Jorge Branco

No prefácio do livro “A Grande Regressão” (São Paulo: Editora Liberdade, 2019), Heinrich Geiselberger afirma que, frente às crises globais e ao empobrecimento extremo, cada vez mais os políticos preferem as soluções de imposição da lei e da ordem conjugadas à promessa de que seu país voltará a ser “grande”. Geiselberger, chega à constatação que “não se pode oferecer muita coisa aos cidadãos e cidadãs nos tempos de austeridade”.

Muitos dizem que as medidas recessivas de austeridade seriam uma resposta contra a crise. Trata-se de um discurso de ilusão e enganação. As medidas de austeridade não tem o objetivo de enfrentar a recessão e a crise, mas sim tem o objetivo de manter ou ampliar os ganhos e lucros do capital frente à recessão, a partir do direcionamento do capital, das atividades produtivas para o circuito financeiro do capital. O controle político sobre o Estado, através do controle absoluto sobre o governo, é chave para esse processo de captação da renda global, tornando-a garantia do capital privado. A acumulação privada viu-se impelida a eliminar a concorrência com os mais pobres pela renda pública e, primordialmente, diminuir o custo do trabalho para viabilizar a manutenção de sua taxa de lucros. Para isso, a narrativa de austeridade é fundamental para legitimar as políticas que diminuem os investimentos em infraestrutura e proteção social, para garantir as altas taxas de juros e as altas taxas de remuneração do capital especulativo.

A eficácia do Estado e dos governos, para implementar tais medidas espoliativas de austeridade, está relacionada ao grau de apoio e legitimidade que essas medidas obtém nas relações políticas. Portanto, a eliminação ou anulação da resistência é chave para que a implementação dessa política de garantia dos lucros do grande capital se implemente com o menor risco possível.

No mundo todo, essa legitimação está sendo construída através da articulação entre duas grandes dimensões políticas: a diminuição da democracia com aumento do autoritarismo e a renovação e fortalecimento do pensamento reacionário no seio da própria sociedade civil.

Esses elementos reacionários são fundamentais nesse processo de construção de hegemonia e contra-hegemonia entre classes sociais dominantes e suas frações dirigentes do bloco de forças reunido para controlar os governos. A transformação de valores reacionários, tais como racismo, antifeminismo, segregação de classes social, fundamentalismo religioso e maximização da ideia de prosperidade, em valores de caráter universal, estabeleceram uma ideia de “valores corretos” em contraposição aos “valores incorretos” constituídos por um conjunto de elementos que, paradoxalmente, vinham sendo caracterizados como avanços civilizatórios. Isso em um período marcado pelo otimismo e pela utopia, mas com certo sentido conflitivo com os interesses de acumulação capitalista, tais como organização sindical, movimentos sociais, liberdade de opinião, igualdade étnica, combate à desigualdade econômica, justiça social e garantias de direitos fundamentais.

Esta renovação do pensamento reacionário legitima a exploração e legitima, simultaneamente, a forma autoritária de implementar medidas políticas de exploração. As sucessivas rupturas com as garantias individuais, conquistas fundamentais do iluminismo, como as implementadas contra os imigrantes na Europa ou os suspeitos muçulmanos nos Estados Unidos, são exemplos lancinantes dessa nova etapa do neoliberalismo – talvez sua fase superior. A verdade é que as democracias neoliberais não podem garantir seus próprios fundamentos e, ante a contradição e a incongruência, optam pelo capital em detrimento dos direitos e garantias fundamentais.

O pensamento reacionário e autoritário já reunia bases orgânicas em centros intelectuais de formulação, em partidos políticos, em organizações empresariais e até mesmo em um sentimento popular difuso e pouco racional de rejeição à realidade econômica. Mas é o encontro com o pensamento neoliberal que dá base ideológica e legitimidade social para a constituição de um bloco de forças e um campo ideológico reorganizado em torno de uma agenda e um programa de austeridade.

Para o pensamento liberal e para o modelo democrático liberal em concreto não há, entretanto, essa universalidade do sujeito e sim um modelo de sujeito ideológico e classista, que exclui aqueles que não atingem seus requisitos históricos, como riqueza, gênero, raça e, até, liberdade formal, como afirma Domenico Losurdo (2015). A democracia, em um mundo globalizado pelo neoliberalismo é, assim, uma espécie de requiem aeternam para as ilusões do iluminismo e suas promessas não cumpridas.

 

Jorge Branco