Bacurau, matar ou correr?

15 de setembro de 2019
Autor: Cristóvão Feil

Se alguém fizer uma crítica ligeira e demagógica ao filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles pode muito bem dizer que se trata de uma obra que retrata uma pequena comunidade de humildes brasileiros virtuosos, pobres, cordiais e solidários vitimados pela sanha assassina de bandidos estrangeiros, dirigidos por um cruel e desalmado nazi. O dilema moral fica reduzido a: matar ou correr? – que remete à comédia de Carlos Manga, uma paródia do clássico “High Noon”, de Fred Zinnemann. No Brasil foi chamado de “Matar ou Morrer”.  

 

A minha crítica não será tão direta e simplificada, assim, como se fora uma sinopse ranheta.

 

Todavia, uma leitura estritamente política de Bacurau, pode perfeitamente classificar a obra de facilitária, panfletária e produto sub-intelectual de um diretor que sofreu processo de politização tardia e insuficiente, chegando às raias de um militarismo de videogame.

 

O diretor do ótimo “O som ao redor”, entretanto, não comete o erro de reduzir o seu filme à mensagens políticas primárias e demagógicas – como entendeu o crítico Eduardo Escorel, que chamou-o equivocadamente de “celebração da barbárie”. Escorel, um crítico respeitado, parece que viu somente um lado do denso filme de Kleber.

 

Bacurau é muito mais que política (rebaixada, binária, maniqueísta, militarista). Este conteúdo particular de Bacurau não é arte, mas ideologia de manual-furreca da velha e stalinista Editora Progresso. 

 

Como ponto a ser elogiado em Bacurau, ressalta-se o mesmo clima de permanente tensão controlada e prolongada, que logrou êxito em “O som ao redor”. Agora, Kleber/Juliano conseguem citar mais e mais influências e referências literárias e cinematográficas, ao ponto que o filme se transforme quase em um catálogo de paráfrases e citações/homenagens, muito na linha de Tarantino. Já citei Carlos Manga, com “Matar ou Correr”, muito obliquamente também pode ser citado uma referência indireta a “O homem do Sputnik”, igualmente de Manga, com aquela parafernália de drones reciclados em formato de velhos discos voadores.

 

Há nítida inspiração na estética do cangaço, do milenarismo, do jaguncismo, com ersatz e bricolagens que lembram Guimarães Rosa e Euclides da Cunha. E isso o aproxima de Glauber Rocha, sobretudo quando interpreta o fenômeno social nordestino com ênfase no exagero apocalíptico e no clichê fácil de uma politização discutível. Afinal, em “Terra em Transe” (1967), Glauber também lança mão da proposta da luta política militarizada. Vejam que há pontos de nítida adaptação ou aderência (em franco ersatz) à conjuntura política nacional de cada momento histórico.

 

De resto, Bacurau é uma obra em mosaico, repleta de cacos formais e cacoetes estilísticos, salpicado de muitos jogos de inteligência, onde nem sempre o espírito da arte autêntica está presente.

 

Quanto ao dilema moral – matar ou correr –, Kleber Mendonça Filho prefere o caminho justiceiro e demagógico: matar.

 

Mas não acho que isso constitua uma celebração da barbárie. É apenas um discurso fácil e plasticamente impactante. Se eu gostasse desta palavra, eu diria que é um discurso “populista”.

 

No pleistoceno da nossa juventude, em filme de faroeste, quando havia o desfecho do acerto de contas entre o bem e o mal, a imberbe plateia de justiceiros (com as próprias mãos) batia pé em uníssono na sala de projeção. “O som ao redor” era arrebatador, encantador. O mesmo não posso dizer de “Bacurau”.

 

Cristóvão Feil, sociólogo

 

Em 14 de setembro, 2019.

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Aqui, a crítica de Eduardo Escorel: https://piaui.folha.uol.com.br/bacurau-celebracao-da-barbarie/