Brasil, Pátria forjada no poder da morte!
Ninguém ouviu.
Um soluçar de dor
No canto do Brasil
Um lamento triste sempre ecoou
Desde que o índio guerreiro
Foi pro cativeiro e de lá cantou
Negro entoou
Um canto de revolta pelos ares
Do Quilombo dos Palmares
Onde se refugiou
Fora a luta dos Inconfidentes
Pela quebra das correntes
Nada adiantou
E de guerra em paz
De paz em guerra
Todo o povo dessa terra
Quando pode cantar
Canta de dor
ô, ô, ô, ô, ô, ô
(Clara Nunes, Canto das Três Raças)
A notícia de que milicianos seriam os executores do assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes já não traz surpresa, apenas ilustra e da visibilidade a algo que todos já sabiam, o poder das milícias! Enquanto o trágico e cruel teatro da intervenção militar violenta, tortura e mata nas favelas e periferias, sob a desculpa cínica de combate a violência, os verdadeiros bandidos, assassinos e traficantes, vivem suas confortáveis vidas em condomínios de luxo, entre distintos cidadãos de bem.
A sociedade brasileira foi edificada sobre lágrimas, suor e sangue… Primeiro de indígenas, depois das negras e negros traficados do continente africano, mais tarde da exploração de colonos migrantes em busca de vida digna… e assim o rastro de opressão, exploração e morte avança, não cessa, apenas muda suas formas, sustentando as classes mais abastadas do Brasil, pátria amada.
A Escola de Samba Mangueira trouxe para a avenida o samba-enredo “história para ninar gente grande” dando visibilidade a “história que a história não conta”, homenageando personalidades que lutaram e entregaram a sua vida pela construção de um país mais justo, defendendo a liberdade e a vida de indígenas e negros. Entre as personalidades homenageadas Marielle Franco, vereadora carioca, assassinada em março de 2018.
Mas o que tem em comum a notícia de que milicianos assassinaram a vereadora, o histórico de violências e opressões de nosso país e o samba-enredo da Mangueira? São fatos que ilustram a verdade nua e crua de que país somos, desmistificando a ideia de um país cordial!
Não há cordialidade na sociedade brasileira, somos um país violento que assassina defensores dos direitos humanos, mulheres, LGBTIs, negros, indígenas, trabalhadores sem-terra, posseiros, moradores de rua e tantos quantos forem empecilho ao sistema de exploração dos sempre senhores destas terras. Assim nas terras brasileiras se deu o massacre de 1500 indígenas guaranis no Caiboaté, no Rio Grande do Sul em 1756, a destruição do Quilombo de Palmares em 1710, Revolta dos Malês em 1835, Destruição de Canudos em 1897, Massacre do Carandiru em 1992, Chacina da Candelária em 1993, massacre de Eldorado dos Carajás em 1996, assassinato do estudante Marcos Vinicius na maré em 20 de junho de 2018, alguns entre tanto casos de violência que demonstram o quanto algumas vidas valem pouco, ou quase nada, frente as estruturas de poder constituídas no país ao longo dos séculos…
Nesse contexto de desrespeito pela vida de alguns, deputados do PSL agem com deboche durante homenagem do deputado federal Marcelo Freixo (PSOL-RJ) a vereadora carioca, na Câmara de Deputados nesta terça-feira (12/03). Freixo trabalhou com Marielle e era seu amigo, fez um discurso em que, entre outros pontos, criticou o uso político do assassinato da vereadora por adversários. É importante refletir que milicianos vivem e convivem em espaços comuns a alguns políticos, partes de um mesmo sistemas de opressão e terror… O Estado Brasileiro nunca ofereceu segurança aos vulneráveis, aos fracos, aos pobres, ou a quem se coloca ao seu lado, muito ao contrário, sempre aproveitou oportunidades para aniquilá-los, como se fossem um peso, um empecilho ao desenvolvimento desta terra adorada.
Marielle Franco, mulher, negra, guerreira, se atreveu a desafiar o poder das milícias, assim como no passado Dandara e Luiza Mahin desafiaram os senhores escravocratas pela vida e liberdade de seu povo. Seu nome, sua luta, seu legado e sua memória foram para a avenida, neste carnaval, ao lado de outras heroínas e heróis, que embora não constem nos livros da história oficial, são reconhecidos na memória do povo brasileiro. O samba enredo da Mangueira deixa claro que o samba não faz despertar uma consciência política, o samba é a própria consciência política já desperta desses “pobres e periféricos”. Acho que já passou da hora de abandonar essa repisada tese da “falta de consciência do populacho” que herdamos de algumas interpretações clássicas da sociologia e da história, fazendo minhas as palavras do professor Orlando Fernandes Calheiros Costa, doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ/Museu Nacional.
Marielle é cria da favela da Maré e a sua morte, como a de tantas e tantos outros, desde o início da colonização destas terras, traz em si a violência do poder da morte que se fez e busca desesperadamente continuar a fazer-se dono dessas terras… Esse poder da morte que das mãos dos senhores de escravos, passou as mãos dos coronéis, dos generais e agora repousa nos “escritórios do crime” das milícias… Esse poder da morte, não é o fim da história. É sempre começo de libertação. Marielle e Anderson foram assassinados, ceifadas suas vidas, tornaram-se presença na história de vida e luta daqueles que existem porque resistem… São aqueles a quem o samba sempre honrará, pois serão eternos na memória do povo brasileiro!
Referências:
https://piaui.folha.uol.com.br/materia/a-metastase/?doing_wp_cron=1552422518.1120550632476806640625
Michele Correa
Graduanda em Filosofia na UFPel, Feminista Negra,
Assessora da Pastoral da Juventude (PJ) e
Militante do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA)