Confira artigos de João Carlos Tedesco sobre os 40 anos da ocupação das fazendas Macali e Brilhante
Autor: João Carlos Tedesco
Reproduzimos abaixo a íntegra dos três artigos do professor João Carlos Tedesco (vinculado ao Programa de Pós-Graduação em História na Universidade de Passo Fundo-PPGH/UPF), publicados pela página do MST durante a semana que antecedeu as celebrações dos 40 anos da ocupação das fazendas Macali e Brilhante, na região de Sarandi, RS. A ação dos camponeses sem-terra, realizada em setembro de 1979, é considerada um marco na luta pela Reforma Agrária e fundamenta a gênese da formação do MST.
Parte 1: A ocupação da granja Macali: marco na luta camponesa no norte do RS
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O norte do Rio Grande do Sul, no século XX, revelou ser um espaço de grandes contradições na questão da terra. Amplas áreas apossadas por pecuaristas, tropeiros, madeireiros e colonizadores, entre a metade do século XIX e meados do século XX, produziram a exclusão indígena, de negros que viviam no meio rural e caboclos. Esses, possuíam pequenas posses, atuavam também como extrativistas da erva-mate e da madeira.
Formas variadas de apossamentos e, posteriormente, de apropriação privada da terra, processos de colonização direcionados a colonos de origem europeia, aldeamentos indígenas, dentre uma série de outros processos, foram produzindo conflitos, exclusões, esbulhos, marginalização e intrusão, processos sociais e econômicos que resultaram em intensos embates em torno da questão agrária.
No início da década de 1960 houve um grande movimento social denominado de Master (Movimento dos Agricultores Sem Terra do Rio Grande do Sul), o qual, na parte norte do estado, teve uma grande expressão, com desapropriações de terra, acampamentos, enfrentamentos com o latifúndio, disputas jurídicas, etc. Fato esse que colocou em evidência o denominado “problema agrário” brasileiro e o tema da reforma agrária.
A “crise da terra” no estado, iniciada já nos anos 1940 e acentuada nos anos 1950 e 1960, provocada pelo esgotamento da fronteira agrícola em terras devolutas, o latifúndio pastoril e de produção de cereais, bem como o de reserva de valor e a penetração da modernização tecnológica no campo, originou o Master, que se definiu mais como uma estratégia de governo do que propriamente como movimento social. Entretanto, esse movimento serviu, ainda que de forma indireta, para despertar a opinião pública para a realidade agrária daquele momento, alertando para o esgotamento da fronteira agrícola e, ao mesmo tempo, denunciando, ainda que de forma tímida, a histórica concentração fundiária existente no Brasil, em geral, e no estado sulino, em particular.
No norte rio-grandense, o Master teve atuação destacada nos emblemáticos movimentos de Capão da Cascavel, na antiga Fazenda Sarandi, e do Passo Feio, na reserva florestal de Nonoai, contígua a reserva indígena. A principal liderança neste cenário foi Jair de Moura Calixto, prefeito de Nonoai, primo-irmão do governador Leonel de Moura Brizola e seu fiel escudeiro. Calixto foi protagonista dos mais interessantes lances deste movimento na região. Os desdobramentos, as ações, as repressões, a contraposição da Igreja Católica, o papel da classe política, o trabalho da imprensa local e estadual, mostraram de forma inequívoca o envolvimento dele na causa da luta pela terra na região.
Por toda a década de 1970, indígenas se organizam no sul do Brasil para desintrusar suas terras, invadidas por camponeses, madeireiros, pecuaristas, granjeiros, os quais, incentivados por políticas, de integração nacional, de modernização produtiva na agricultura, etc., permitiram a entrada de não-indígenas em aldeamentos, provocando, com o passar dos anos, intensos conflitos e expulsões. No final da década de 1970, vários movimentos sociais, nos três estados do sul, objetivavam a expulsão de colonos intrusados nas terras indígenas. O de Nonoai no norte do Rio Grande do Sul foi de grande expressão, com milhares de famílias de colonos expulsas em poucos dias, resultando num intenso problema social a ser resolvido, pois esses sujeitos não tinham para onde ir.
O movimento indígena que resultou na expulsão de milhares de camponeses pobres que viviam na condição de posseiros no interior das reservas de Nonoai, constituiu-se num evento de dupla face: de um lado, do lado indígena, o evento se constituiu no coroamento de uma caminhada vitoriosa, que começou com um longo processo de preparação, amadurecimento e organização coletiva e que resultou na reconquista da terra; de outro, do lado dos colonos posseiros, o movimento serviu para mostrar o alto grau de desmobilização para a luta, desorganização e falta de espírito coletivo dos camponeses. Como consequência, milhares de sem terra ficaram a vagar pelas estradas na região de Nonoai, Ronda Alta e Sarandi.
Das mais de mil famílias expulsas da Reserva de Nonoai, a partir de negociações, propostas e promessas, num cenário de total ausência de perspectivas, em torno de 750 famílias foram transferidas, provisoriamente, para o Parque de Exposições de Esteio para, com promessa de estarem em melhores condições (auxílio, infraestrutura, etc.), permitir a discussão e a proposição de alternativas. Outro grupo permaneceu acampado próximo à reserva, outros ainda se espalharam pela região sendo apoiados e acolhidos por parentes e/ou em propriedades de conhecidos na circunvizinhança.
Porém, desde movimento surgem lideranças forjadas no campo popular, preocupadas na articulação de um movimento de abrangência mais ampla, capaz de fazer convergir para um mesmo foco propostas dispersas em torno da luta pela terra. Nesse horizonte de organização estava presente a Comissão Pastoral da Terra, lideranças religiosas e políticas de expressão popular, sindicalistas combativos, os quais, aos poucos, vão cooptando adeptos e ganhando espaço no terreno político. Já no final de 1978, criam-se as condições para a articulação de um movimento de resistência e pressão, a partir de um plano estratégico que começa a se esboçar com o surgimento de lideranças. Mas, naquele primeiro momento, a incipiente organização e a falta de uma participação mais consistente de parte das lideranças e intelectuais, o medo de represálias, o medo de ser mal visto perante a opinião pública, impediram a organização de um movimento imediato de ocupação. Permanece assim grande número de pessoas no abandono em toda a região norte do estado.
Mesmo no Parque de Exposições, o alojamento era precário, promessas não foram cumpridas e nem levadas em frente. O grupo no interior do parque esteve sempre sob forte aparato policial-militar, dificultando-lhe a saída e as visitas de entidades e populares solidários. Porém, essa tentativa de isolamento não foi tão eficiente, pois o fato de estarem próximos a capital, os colonos, de uma forma deliberada ou não, acabavam dando visibilidade maior à realidade e promovendo ampla discussão e denúncia sobre a questão da terra no estado e no país. A pressão para a adesão aos projetos de colonização na Chapada dos Guimarães e em Canarana foi intensa.
Após muitas negociações, promessas, outras não cumpridas, repercussões, mediações, solidariedades, pressões, etc., três meses depois, em torno de 550 famílias das que estavam no Parque de Exposições foram transferidas para projetos de colonização no Mato Grosso, numa região denominada de Terra Nova, em projetos de agrovilas, orientados por igrejas. Outras 130 famílias foram para assentamento em Bagé, sob orientação da Cooperativa Aceguá. Outro grupo que permaneceu acampado próximo da reserva e os que se espalharam pela região bateram pé na promessa do Governador Guazelli de conseguir terras no estado. Desse modo, parte, pelo menos, da realidade conflituosa e problemática dos colonos expulsos havia sido resolvida.
Porém, havia o problema dos que ficaram próximos ainda à reserva de Nonoai. Sem nenhuma proposta efetiva de reassentamento, na metade de 78, um grupo de 37 famílias ocupou a reserva florestal da Fazenda Sarandi. Em 05 de julho de 1978, dois dias após a primeira ocupação, já se encontravam mais de 100 famílias no interior da referida área. Portanto, a partir dos acontecimentos de Nonoai, a primeira consequência prática da revolta dos índios foi a invasão da reserva florestal da Fazenda Sarandi e uma outra área particular.
Parte 2: Acampamento na Fazenda Sarandi vira simbolo de resistência
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Esboça-se no norte do Estado do Rio Grande do Sul, a partir do começo de 1978 um novo (velho) cenário de lutas envolvendo a questão da terra, resultado de problemas iniciados nos idos de 1960 e não resolvidos satisfatoriamente pelo Estado Brasileiro. Este caldo de crises faz despertar o debate, entre políticos, lideranças religiosas, lideranças estudantis e do meio sindical, em torno da problemática da terra, ao mesmo tempo em que são gestados e esboçados os primeiros lances organizativos para a eclosão do Movimento dos Sem Terra.
Novas estratégias começam a se fazer sentir, dentre essas, a via parlamentar. Comissões e representações de Sem Terra vão a Porto Alegre por dezenas de vezes, acampam em frente ao Palácio, ao Incra, pressionam parlamentares e a Igreja Católica, buscam apoio na imprensa, nas universidades, fazem abaixo-assinado, enfim, buscam se fazer sentir, de uma forma organizada e coletiva como resultado de um processo de consciência da categoria que, mobilizados agora e conscientes da necessidade de luta, tentam implementar.
Chega-se então ao ano de 1979 e, desde os primeiros meses, o grupo dos expulsos de Nonoai já tem uma certa caminhada, a partir da qual já obtivera certa experiência, coesão e poder de organização, viabilizada por lideranças, dentre elas, João Pedro Stédile e Ivaldo Gehlen. Esse processo permitiu soldar certas rupturas no interior do grupo e eliminar certos medos e/ou certa timidez para a luta e resistência. Houve um processo amplo de organização, de estratégias de nucleação em municípios da região, ampliação do contingente de camponeses com pouca ou sem terra, coordenações, interligações e redes, as quais vão criar um corpo organizativo e que dará consistência às ações que estavam por vir em meados de 1979 com ocupações de fazendas e acampamento. A organização dos núcleos de Sem Terra inova ao introduzir uma certa pedagogia no trabalho de estruturação e organização do Movimento.
Em julho de 1979, os Sem Terra iniciam o que se poderia chamar de movimento mais amplo de pressão, pois consideramos que a invasão da reserva florestal e de uma outra gleba particular da Fazenda Sarandi (propriedade de Ary Dionísio Dalmolin). Em meados de 1978, foram apenas os primeiros esboços do movimento. Aqui já temos presente alguns resultados práticos da organização dos núcleos formados pela CPT. Naquele momento, intensificaram-se as viagens à capital do estado, objetivando obter do governo a liberação das áreas das fazendas Macali e Brilhante, na antiga Fazenda Sarandi, para o assentamento dos expulsos de Nonoai.
O governo, naquele momento, pediu um prazo de 30 dias para resolver a questão, porém o prazo esgotara-se sem que fosse apresentado uma proposta de solução. Frustrado o intento dos Sem Terra de receber do governo as propriedades citadas, sem a necessidade de ocupação, o grupo decide ocupar a gleba Macali na noite de 6 de setembro, data estratégica, véspera de feriado nacional, pois dia 7 de setembro seria numa sexta-feira, período de um feriado prolongado, pensava-se que seria mais fácil e as repercussões apareceriam somente na segunda-feira. Um contingente, primeiramente de 101 famílias, transportadas por caminhões de alguns municípios da região norte, em particular de Nonoai, Ronda Alta e Planalto, ocuparam a referida fazenda. Chegaram à noite, ficaram ao relento e, no dia 7 de setembro montaram barracas grandes que abrigavam famílias inteiras.
O governo estadual reage à ocupação e ameaça desmantelar o movimento da Macali num primeiro momento, porém recua em seguida para tentar resolver o impasse pela via da negociação. E, finalmente, surge o primeiro resultado prático favorável aos ex-posseiros das reservas indígenas de Nonoai e de outros municípios: a Macali será conquistada; decidindo o Governo do Estado pela permanência no local do grupo de ocupantes até que uma solução definitiva fosse tomada, assim que fossem superados os ditames burocráticos.
O caso Macali, porém, abriu um precedente e os sem terra se animam e preparam a ocupação da Brilhante, o que se efetiva ainda no final do mês de setembro de 1979. Como os ocupantes da Macali não foram retirados, os da Brilhante também não e, assim, produziu-se um germe de esperança, confiança na organização e luta num cenário nacional extremamente avesso e temeroso.
A ocupação da Brilhante, no entanto, provoca forte reação do governo e tem-se nos meses subsequentes inúmeros confrontos entre ocupantes e Brigada Militar. Foram mais de seis meses de muita pressão e enfrentamento, com idas e retornos dos colonos em seu interior, muitas resistências e estratégias, as quais resultaram em grande aprendizado para os agricultores e, principalmente, para as lideranças e intelectuais do movimento. Esse processo todo vai dar o substrato, logo após, para o “Movimento dos Sem Terra”, fruto do acampamento da Encruzilhada Natalino.
Ademais, os casos de Macali e Brilhante reacendem as discussões sobre a polêmica em torno das terras do Estado na Fazenda Sarandi. Na Assembleia Legislativa, no final de 1979, uma CPI desnuda uma série de trapaças, negócios escusos, casos de grilagem, vendas ilegais de madeiras, distribuição de terras para pessoas estranhas a agricultura, desmatamentos realizados ao longo do período militar (desde 1964 até 1979), irregularidades que, invariavelmente, eram realizadas pelos funcionários-administradores sob a intermediação de parlamentares situacionistas.
As ocupações das fazendas Macali e Brilhante, além da ameaça de outras vizinhas e/ou integrantes da histórica Fazenda Sarandi, em setembro de 79, envolveram não só os camponeses expulsos de Nonoai, mas, também, os atingidos por barragens, diaristas de granjas, assalariados rurais, sem terra assentados na Fazenda Sarandi (desapropriação de Brizola pelo Movimento Master) e que ainda não tinham obtido título definitivo, bem como posseiros, arrendatários, minifundistas que entendiam não ser possível fragmentar ainda mais sua propriedade e que necessitavam de terra para permitir a sobrevivência de membros de suas famílias, além dos retornados dos projetos de colonização no Mato Grosso e mesmo alguns de Bagé. Portanto, é um cenário amplo de deserdados da terra, camponeses que queriam continuar na terra, mas, suas condições, no interior do modelo de modernização produtiva que se desenhava, não lhe permitiam.
O grupo se amplia; produzem-se novos grupos e conflitos internos em torno de quem poderia ou deveria ser contemplado numa futura desapropriação e possível seleção de acampados em determinadas fazendas. Acampamentos anexos aos já existentes começam a aparecer na região, produzindo conflitos e divisões internas, bem como maior visibilidade pública do fato, apoios e opiniões externas em torno da questão.
A primeira vitória, ainda que parcial, dos grupos que pressionavam acontece entre maio e julho de 1980, através da seleção de famílias para o assentamento na Fazenda Brilhante. Sendo essa, como também a Macali, objeto de grandes disputas judiciais e pressão social.
Em outubro de 80, outro grupo não contemplado tentou invadir a Annoni sem obter resultados positivos, pois são imediatamente desalojados pela polícia, a qual esteve sempre no período em alerta e marcando presença na região, forçando os invasores a retornar para o acampamento na Brilhante.
Desse modo, a partir de Nonoai, deslocam-se várias frentes em torno da questão da terra na região, além de sua tentativa de assentamentos, discute-se a legitimidade das negociações fundiárias, reabrem-se as discussões em torno das políticas de colonização que, no fundo, foram marca registrada de governos militares de até então, assim como de governos do estado.
A questão agrária regional passou a ser muito mais politizada por setores da sociedade civil organizada, pois experiências frustradas tanto dentro da Reserva Indígena de Nonoai, quanto outras formas de pressão e invasões tinham se mostrado pouco frutíferas nesses quase dois anos após a expulsão. Nesse sentido, mais de 350 famílias de acampados no interior da Fazenda Sarandi continuavam a vê-la como símbolo de resistência e expressão das contradições da questão agrária no Brasil e em especial na região e, acima de tudo, palco da insistência da solução para os acampados próximos e/ou no interior a mesma.
Parte 3: Macali e Brilhante inspiram criação do MST
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Os movimentos surgidos pelas ocupações das fazendas Macali e Brilhante e a existência de muitos camponeses que se tornaram Sem Terra no norte do estado, aos poucos, vão definir um outro grande movimento social que será referência em nível de Brasil, o da Encruzilhada Natalino.
As estratégias e lutas começaram em janeiro de 1981, na dita Encruzilhada Natalino, ao sul da Fazenda Sarandi, na entrada da gleba Macali. No início, sua adesão foi paulatina e a visibilidade pública e midiática também aquém e muito distante do que se transformaria pouco tempo depois. Em julho de 1981, já eram 600 famílias acampadas reivindicando terra no estado. Em termos geográficos, a Encruzilhada permitia um entroncamento entre as estradas Passo Fundo-Nonoai e Ronda Alta-Sarandi no interior da Fazenda Sarandi.
O acampamento, nessa conjuntura de abertura, de certa ojeriza social em torno da estrutura militarizada da sociedade, bem como da histórica luta regional pela reforma agrária, em especial na Fazenda Sarandi, passaria a ser expressivo da conjuntura política e do cenário regional dos conflitos sociais, das contradições fundiárias na região.
Esse acampamento torna-se de grande expressão, pois, além de agregar vários outros que estavam presentes e isolados no momento, permite uma maior visibilidade da questão da terra no Estado, das políticas repressivas do governo militar decadente, da participação ativa e inédita de grupos de apoio da Igreja Católica e de outras entidades ligadas aos direitos humanos, ao mundo acadêmico, a agremiações políticas que estavam se recompondo no país, bem como de ser uma luta que expressava certo grau de maturidade histórica em razão de uma temporalidade já presente na região.
Sofridas experiências e promessas e mais promessas fizeram aumentar a força, a organização e a convicção do Movimento. Aliada a esses processos todos, fez-se presente a mística da luta pela terra, a terra como dom de Deus para todos, mediação da Igreja Católica como fundamental nessa realidade e nas tentativas de solução dos conflitos internos.
É bom dizer que, no período, a Fazenda Sarandi não representava apenas um espaço do latifúndio, ainda que esse fosse sua marca registrada. Proprietários, pequenos camponeses, em geral descendentes de imigrantes europeus e com características de agricultura familiar, índios caingangues de algumas reservas em seu entorno, posseiros, arrendatários, madeireiros, assalariados rurais, dentre outros, a compunham.
O acampamento da Encruzilhada Natalino passou por várias fases, que vão da sua constituição lenta até metade de 1981, intervenção militar-federal, assentamento provisório em 1982 até o assentamento definitivo em outubro de 1983. Dentre os fatos mais expressivos dessas fases encontram-se a capacidade que o Movimento teve de chamar a atenção da esfera pública e política do estado e do governo federal, do Incra, das forças de repressão, dos latifundiários locais como medo de invasão em suas terras.
Os conflitos internos foram inúmeros; é impossível elencá-los aqui em sua totalidade e abrangência. Apenas enfatizamos que muitos deles giravam em torno de questões como: as opções em ficar ou ir para projetos de colonização, a presença do coronel Curió como expressão e representante das forças de repressão, as lutas por hegemonia interna de grupos sob influência externa, ações midiáticas, políticas e militares no sentido de deslegitimar e desqualificar o movimento qualificando os seus membros de vagabundos, preguiçosos, aproveitadores, agitadores da ordem e da desordem da propriedade; repressão policial ostensiva e simbólica; mística religiosa (cruz, sofrimento, morte, esperança, a fome, a junção entre fé e política assumidas coletivamente).
Campanhas e mais campanhas foram organizadas no campo solidário por igrejas, universidades e sindicatos; inédito levantamento de várias fazendas na região, em outras partes do estado e em várias regiões do país para efeito de reforma agrária – processo esse feito com a presença de representantes de sem terra -; tentativa de ocupação de várias fazendas na região, dentre elas a Annoni e a Santa Rita; conflitos e divisões internas em termos de área a quem deve ser dada a prioridade de assentamentos; intensas ritualizações por ocasião do dia do agricultor (25 de julho 81); acampamentos em Porto Alegre em frente ao Palácio Piratini; ostensiva intervenção militar federal justificada como área de segurança nacional para combater focos de tensão social no campo; divisão do acampamento entre os que decidiram ficar e os que queriam partir para o Mato Grosso; posição de bispos em prol da justiça social no campo e muitas eteceteras.
Enfim, o acampamento de Encruzilhada Natalino não encerra um processo de luta, ao contrário, abriu muitas possibilidades. Demonstrou ser possível pela luta, pressão, organização, estratégias coletivas, mediações honestas e convictas, publicizando e convencendo a opinião pública e o próprio grupo, lançando mão de rituais religiosos e políticos, dentre uma série de outros aspectos, ser possível, pela mão dos trabalhadores, alterar pelo menos alguns aspectos da injusta distribuição da terra no país.
Essa experiência colocou em xeque as propostas de colonização pelo governo, expôs os malefícios e as injustiças do grande latifúndio no estado e no país, as conquistas dos espaços políticos e da reforma agrária ainda que num cenário de militarização e consequente repressão.
As ocupações das fazendas Macali e Brilhante foram um símbolo de luta pela terra no estado e no país. A partir disso, condensaram-se movimentos em prol da reforma agrária, de justiça social no campo, de políticas de incentivo à pequena propriedade familiar, permitiu, pela luta, maior cidadania no campo e no meio social como um todo. Acampamentos espalhados pelo Brasil darão sequência a esse processo de luta regional pelo acesso à terra, com mais organicidade e participação de entidades, assim como vão redefinir os processos e as estratégias de oposição e de enfrentamento dos representantes do latifúndio e suas instâncias mediadoras.
Entendo que os eventos da Macali e Brilhante representaram o despertar para um novo momento histórico. A cada ação ou ameaça de invasão crescia a adesão. Assim, após uma caminhada de dois anos, estava gestado o maior movimento social agrário de todos os tempos, o Movimento dos Sem Terra (MST), deflagrado a partir do acampamento de Encruzilhada Natalino.
João Carlos Tedesco
Professor do Programa de Pós-Graduação em História
Universidade de Passo Fundo (PPGH/UPF)