"Coringa", um filme acovardado

13 de outubro de 2019
Autor: Cristóvão Feil

“Art, às vezes, é só o diminutivo de Arthur”.

(Keith Richards)

 

Para quem não gosta de super-heróis – como eu – já pode-se avisar (sem espoliar surpresas) que o filme Coringa não tem lhufas a ver com o Batman, nem com Bruce Wayne e nenhum magnata filantropo do gênero.

Esqueçam Batman, zero referência sobre “o maior detetive do mundo”. Esse Coringa é um nome aleatório, criado por impulso súbito do protagonista da trama, o modesto e pobre palhaço de profissão, Arthur Fleck, filho de mãe solteira e que teve uma infância de abuso e abandono. O cara é uma tragédia ambulante.

Mais que pobre, Art é um lúmpen com profundos desequilíbrios mentais e emocionais, uma categoria social que cresce no mundo de nossos dias, seja na periferia do sistema, como o Brasil, seja no centro do sistema, como é Gotham City (o único ponto de contato com o comics do homem-morcego), que é declaradamente Nova York.

A insanidade paira no ar o tempo inteiro da projeção. Não é à toa, então, que o diretor Todd Phillips tenha escolhido Nova York, com apelido de Gotham, a capital planetária da doença social de nosso tempo.

Aliás, um parênteses: quando assisti o filme, estive acompanhado por insanos: na minha frente havia um sujeito extremamente obeso que passou o tempo inteiro consultando a tela do smartphone, e ao meu lado havia uma senhora glutona, portadora de inúmeros e volumosos pacotes, mastigou algo ruidoso durante os 120 minutos do filme, a folhas tantas, sedenta, ela começou a beber de uma garrafa que emitia sons estranhíssimos. Me senti vendo um filme 3D no interior de um hospício, a insanidade da tela estava presente ao meu lado, na sala de projeção. Se podia tocá-la.

Avante: o filme de Todd Phillips nos obriga a lembrar de “Laranja Mecânica”, do inesquecível mestre Stanley Kubrick. A violência gratuita, sem vetor, e sem direção, é a tônica de ambos os filmes, tanto de Kubrick, quanto de Phillips. Mas os atos violentos de Art (vivido pelo ótimo  Joaquin Phoenix) são distintos dos atos violentos de Alex (o líder das gangues violentas de Laranja). E a solução de ambos os roteiros diferem diametralmente quanto à violência.

No Laranja, a solução é dada pelo Estado, ao experimentar o chamado tratamento Ludovico, uma técnica de condicionamento psicológico perigosa e passível de ser adotada por futuros governos totalitários (na época, Kubrick manifestou esse temor). No Coringa atual, o roteiro deixa livre a violência, não há argumento que impeça a onda de brutalidade que se desborda para a massa inominada. O Estado, ao contrário da Laranja, fica omisso, limita-se a mandar a polícia fazer o que sempre faz: acompanhar e competir na violência horizontal.

A meu ver, o diretor Todd Phillips (que também é o roteirista) perde a mão depois da cena definitiva e trágica entre Art e a mãe (à qual ele sempre foi afeiçoado e carinhoso), acamada no hospital. Neste ponto, abriram-se as comportas da insanidade horizontal, sobretudo na cabeça perturbada de Art. O ainda não-Coringa (ele escolhe o nome depois disso) faz um balanço de vida absolutamente niilista. Tudo se despedaça no peito de Art, ele passa a navegar na bruma escura dos seus fantasmas e já não vê mais ancoradouro para a sua alma sangrada e ressangrada. Fica instituída a loucura.

O roteiro – a meu ver – adota a solução mais fácil: tudo aquilo que não se pode explicar no comportamento humano dá-se o nome de loucura (vulgar palavra-ônibus para todas as inconstâncias errática dos humanos). Ademais, loucura é ausência de método.

O roteiro passa, a partir daí, a ser conduzido mecanicamente pelos desdobramentos da loucura de um lúmpen esmagado pelo destino. Não há mais pensamento, não há mais discurso, o condutor de um talk-show de TV, vivido por Robert De Niro, tenta extrair alguma racionalidade do Coringa, mas este não consegue formular nada, ele apenas manifesta o vazio de si, a sua desumanidade integral e incontrolável. A revolta sem vetor político.

O roteiro de Todd Phillips sugere, do início do filme até o ponto da mãe no hospital, um desdobramento político, uma solução-chave nos marcos das conquistas iluministas. Mas Phillips – não esqueçamos que o filme foi produzido pela Warner Bros. Pictures (de propriedade do império tecnológico AT&T) – preferiu despolitizar a trama do roteiro. Quando ele opta por credenciar a loucura como explicação e álibi para a violência geométrica, o filme tropeça e vira objeto passivo da mecânica tradicional da brutalidade sem limites.

O que se sugeria como arte, desanda na facilidade da violência sem propósitos. “Art, às vezes, é só o diminutivo de Arthur”, já dizia o velho e sábio Keith Richards.

Como a consigna política está desmoralizada, por verdadeiras campanhas midiático-ideológicas do establisment conservador mundial (representado também pela Warner/AT&T), Todd Phillips sucumbe ao patronato que o financia e entrega o filme de bandeja à violência sem bandeira.

A obra termina no tempo anterior à política, no tempo hobbesiano, no tempo do estado de Natureza, da luta de todos contra todos. O homem é o lobo do homem. O lúmpen é o lobo do homem.

Imagino Phillips faceiro, todo pimpão, indo para uma reunião com o “pica” da Warner. O “boss”­ lê parte do roteiro e estanca na frase do cartaz: “Mate um rico” ou “Morte aos ricos”. Ele fecha a pasta e entrega a Phillips, dizendo: “Retira esse negócio, ou melhor, mantém esse negócio de morte aos ricos (isso é forte, muito politizado!), mas faz um epílogo que o esvazie, que isso perca o sentido político”.

E, na sequência, Phillips, obediente aos “capos” da Warner, atocha o filme de psicologismos de almanaque e semiologias escapistas, fuga do hospício (na cena do prontuário de sua mãe no famoso asilo Arkan), e subjetividades que sonegam a politização objetiva da obra.

Para a Warner, exibir a luta de classes do cotidiano deve ser impugnado de forma definitiva. Atribuir tudo à “loucura de nosso tempo” é a saída dos covardes e dos magnatas. 

Uma pena. Coringa também cita Chaplin. Mas não sei se foi elogio ou crítica, já que apresenta um cinema cheio de gente rica e engalanada rindo de um filme do eterno Carlitos. Não entendi essa parte. Ou Chaplin ficou obsoleto (os ricos o absorveram e o metabolizaram), ele que ficou interditado pelo macarthismo de viver nos EUA, ou foi apenas uma homenagem inocente, mas fora de lugar.

Há uma crítica à televisão, com programas que exploram as misérias humanas e as transfiguram sob a forma de um show, e visto por gente de poucas instruções (como a mãe de Art). Assim, enquanto os ricos vêem Chaplin, os pobres vêem TV em locais insalubres, obscuros e próprio das ratazanas urbanas.   

Nestes pequenos esquetes do filme ainda se respira o ar puro da crítica politizada, ainda que tímida. No entanto, não injeta oxigênio suficiente para salvar o argumento do roteiro que desanda na pusilanimidade da lógica dinheirista da Warners Bros. Pictures.    

Em 13 de outubro, 2019.

 

Cristóvão Feil, sociólogo.