Legalidade: Resistência versus Conciliação

1 de outubro de 2019
Autor: Cristóvão Feil

O longa-metragem brasileiro “Legalidade” (“Resistance”, título internacional) procura recontar a história do movimento de resistência legalista quando da renúncia do então presidente da República, Janio da Silva Quadros, em agosto de 1961. Mas temo que não tenha logrado êxito, fica nos devendo o antes e o depois daqueles 13 dias que abalaram o Brasil. 

 

O filme não situa o contexto mundial da grave crise política pelo qual passou o Brasil em 1961.

 

Estávamos em plena Guerra Fria, Cuba havia iniciado seu processo revolucionário em 1959, e o elemento gatilho da renúncia de Janio certamente ocorreu no dia 21 de agosto de 1961, quando o presidente Janio assinou uma resolução que anulava as autorizações ilegais outorgadas a favor da  mineradora estadunidense Hanna Mining e restituía as jazidas de ferro de Minas Gerais à reserva nacional.

 

No dia 24 de agosto, três dias depois, o deputado Carlos Lacerda (UDN), sempre ele, faz um violento discurso transmitido em cadeia nacional de rádio e TV, onde acusa o então ministro da Justiça, Pedroso Horta, de tê-lo convidado a perpetrar um golpe de Estado em favor de Janio. No dia seguinte, 25 de agosto, Janio renuncia.

 

Na sequência, uma junta militar se manifesta contra o rito constitucional,  segundo o qual o cargo de presidente deve ser ocupado pelo vice-presidente eleito (na época o vice era eleito, e Jango fez mais votos populares que o próprio Janio).

 

Esses fatos se juntaram a outras políticas agressivas e autonomistas adotadas nos primeiros seis meses de governo, por Janio, como:

 

  • Adoção de uma política externa independente (a chamada PEI), que incomodava Washington.
  • Condecoração com a Ordem Cruzeiro do Sul ao revolucionário argentino-cubano Ernesto Che Guevara.
  • Apoio à independência das colonias portuguesas na África, Angola e Moçambique.
  • Envio ao Congresso de projetos de lei antitruste, a lei de limitação e regulamentação da remessa de lucros/royalties, e a pioneira proposta de lei de reforma agrária.
  • Defesa da política de autodeterminação dos povos, condenando as intervenções estrangeiras.
  • Condena o episódio da invasão à Cuba, através da Baía dos Porcos e a interferência belicista estadunidense (governo Kennedy) que provocou o isolamento definitivo de Cuba.
  • Acaba com os injustos subsídios ao câmbio que beneficiavam poderosos grupos importadores às custas do Tesouro, sobretudo os grandes jornais, que importavam papel com dólar subsidiado (em cerca de 75%), e que se irritaram com a perda de seus privilégios.

 

Já se vê que estava reunido o complexo caldo de cultura ajustado em um plano inclinado para um golpe de Estado no País. O filme do jovem diretor Zeca Brito (nascido em Bagé, RS, e atual dirigente do Instituto Estadual do Cinema/RS) é politizado. Eu diria, corajosamente politizado, por que nos dias correntes a politização está se traduzindo quase como uma doença venérea, para alguns militantes do senso comum rebaixado. 

 

O roteiro de “Legalidade” inclui personagens ficcionais mesclados com os conhecidos protagonistas históricos. A intenção meritória visa dotar a narrativa de mais espessura artística, na tentativa de fugir do gênero documental, que exigiria linearidade e obediência cronológica, podendo levar o espectador ao tédio e desinteresse. No entanto, o baixo orçamento da obra cinematográfica (cerca de 3 milhões de reais, captados em nove longos anos) não permitiu grandes vôos artísticos, a meu ver.

 

Prevalece uma estética de porão. É gritante a estética de baixo orçamento. A cena da perseguição dos jornalistas por um jipe dos milicos, com tiroteio e fuga noturna, deixa exposto o minguado caixa do orçamento e a rarefação dos recursos técnicos na dinâmica da cena, do seu enquadramento (que jamais toma distância) e na fotografia carregada, que mais esconde do que revela. 

 

Se isso diminui o acento artístico da obra cinematográfica, contingenciada por orçamentos sonegados, seja do poder público, seja do setor privado (sempre orientado pelo pensamento filisteu, desprovidos de imaginação artística, os mesmos boçais que acabam de vilipendiar a altiva Fernanda Montenegro), só faz aumentar o arrojo e a coragem de contar uma história em que houve o alinhamento político entre povo, líder de massa e uma fração da força militar no Brasil. O filme consegue passar a permanente tensão entre a resignação do conciliador e a intrepidez da resistência. E mais: cogita o tempo inteiro de escancarar a participação secreta, mas ativa e militante do interesse de Washington na formulação e concretização de um golpe de Estado no Brasil.

 

A lástima é que o baixo orçamento obriga o filme a cessar a narrativa no ponto da vitória da conciliação. O que poderia ser evitado, posto que o dinheiro acabou, com o truque da grande legenda na tela, dando conta dos desdobramentos históricos do ato conciliatório de Jango, já que este chega ao Planalto e não hesita em trabalhar pelo plebiscito popular, que acabou ocorrendo em janeiro de 1963, onde votam 12,3 milhões de eleitores e a vitória do presidencialismo com amplos poderes alcança cerca de 9,5 milhões de legalistas.

 

Restaria a pergunta inevitável: se Jango marcha por terra (arregimentando apoio institucional e popular e promovendo uma grande mobilização de massas) para Brasília para assumir a presidência no dia 7 de setembro de 1961 (como de fato ocorreu), teria o golpe civil-militar de abril de 1964 logrado êxito? Ou seja, a resignação parlamentarista de 1961 foi uma demonstração de fraqueza e um prenúncio do que viria a acontecer em abril de 1964, agora com pleno sucesso?

 

Noves fora, observo que o diretor Zeca Brito (apesar do cacófono e do modestíssimo orçamento) pode e deve realizar novos filmes de caráter político. É um veio da cinematografia a ser explorado e que sempre foi sucesso de público e de crítica. Quem sabe não estamos vendo surgir aí um novo Constantin Costa-Gavras, autor de memoráveis filmes políticos como “Estado de Sítio”, “Z”, “Missing”, “A Confissão”, e muitos outros.

 

Cristóvão Feil, sociólogo

Em 27 de setembro, 2019.