O esvaziamento do Executivo e o fortalecimento político do Judiciário


Os episódios recentes que envolvem o Habeas Corpus de Lula e o consequente alvará de soltura (inútil) impetrado pelo magistrado Rogério Favreto são positivos. Estes fatos deixam expostos o conflito interno no Poder Judiciário do Brasil, atravessado que está por interesses político-partidários inconfessáveis e indesmentíveis, onde a direita mais conservadora e atrasada exibe sua hegemonia aplastante e excludente.

O golpe de Estado de 2016 se desdobra aos trancos e barrancos e se equilibra precariamente em contorções intestinas e disputas internas que desorganizam a mecânica do Estado e seus agentes mais dinâmicos. Perpetraram um golpe que não ousou admitir o seu nome, portanto tiveram que admitir no poder formal (e não real) uma malta de políticos profissionais cuja experiência se reduzia às manobras heterodoxas de um parlamento setorizado e caprichosamente loteado por donatários e financistas (Joesley contou tudo, não há o que contestar neste quesito que poderíamos chamar de “a burguesia e os seus garçons no Congresso”). Tiveram que admitir no poder um chefe do Executivo fraco e soterrado de suspeitas de corrupção e malfeitos de toda a ordem. Por isso, Temer reúne as mais baixas expectativas, seja da comunidade golpista (que vai do banqueiro, passando por burocratas, classes altas e setores da classe média, até pobres que arrotam caviar e lúmpens de todo o gênero, em especial, os lúmpens de colarinho branco), seja da maciça maioria da população brasileira em todos os rincões do País.

Falamos genericamente dos três poderes da República, tal como está consagrado na Constituição, ou seja, a sede formal do poder no Brasil. Quando se fala em poder de Estado, se imagina uma estrutura piramidal onde o ponto nevrálgico mais forte e decisivo é o vértice, o cume, o ponto mais distante da base social. Na sequência, se imagina que o poder real mora fixo neste cume, o que não corresponde à verdade dos fatos e da dinâmica das formações sociais. Em casos de crise severa do Estado, golpe intestino, rebelião localizada, revolta popular, ou revolução mesmo, o bloco no poder opera deslizamentos tectônicos intencionais e estratégicos que modificam e permutam os lugares do poder real e poder formal. Você supõe que o poder real está no Executivo, de forma fixa e cristalizada. Errado. O poder real se deslocou. Já não se encontra no vértice imaginário. O Executivo, com Temer de titular, se transformou em poder formal. A fração de classe hegemônica dá uma guinada no locus de poder, tendo em vista desempenhos débeis ou desastrosos. No Brasil, o Executivo e o Legislativo estão completamente desmoralizados, logo o Judiciário assume um papel relevante para processar dificuldades de ordem eminentemente política e de gestão crítica.

Nicos Poulantzas (in “L’état, le pouvoir, le socialisme”, 1978) nos ensina que “o Estado não é um bloco monolítico, mas um campo estratégico”.

Agora podemos entender o papel e a missão do juiz Sergio Moro no contexto mais geral do golpe de Estado de 2016. Repito: o centro não fica no cume. Se fizermos um “mapa de calor” (essa metáfora emprestada ao futebol é ótima) dos constantes deslocamentos do poder real vis-à-vis o poder formal no Brasil no período dos desdobramentos do golpe, veremos que o vértice da pirâmide está ocupado pelo calor de baixa intensidade do poder formal: Temer. Já o Judiciário está rubro e febril pela dinâmica calorífica do poder real. Por isso lá irrompem diariamente os conflitos abertos, não em matéria doutrinária e jurisprudencial do Direito, mas acerca da política tout court, do processo eleitoral e das ideologias que cercam e povoam estes fenômenos sociais.

Assim dito, pessoalmente custo a acreditar que Moro seja um tipo stay-behind do golpe. Não, Moro é vanguarda, dita a linha política, pelo menos no âmbito do Judiciário. Quem viu a sua desfaçatez – em plenas férias europeias – e militância firme no episódio do vai-vem da soltura de Lula, pode deduzir que o sujeito é capo.

 

 

Cristóvão Feil

Sociólogo