O grande erro de Jango


Jango e o general Amaury Kruel, então comandante do II Exército. Kruel recebeu um suborno de 1,2 milhões de dólares do então presidente da FIESP, Raphael de Souza Noschese, para trair o presidente Goulart. Ele utilizou os recursos para a compra de fazendas. Kruel nasceu em Santa Maria (RS).

A deflagração do golpe de Estado que sustentou a ditadura de 1964/1985 no Brasil teve vários protagonistas, todos golpistas e antidemocráticos. A vanguarda foi militar, mas contou com a participação desenvolta e dinâmica da totalidade da mídia, de parcela majoritária da Igreja católica, do mundo empresarial (o que hoje chamam de “mercado”),  do setor primário (hoje conhecido como agronegócio de exportação), o segmento pelego (na época se chamava “bigorrilho”) do sindicalismo oportunista, e frações do movimento estudantil reconhecidamente de direita. Assim, pode-se (deve-se) classificar o golpe de 1964 como o resultado vitorioso de uma aliança civil-militar, com direção franca e hegemônica dos gorilas, de ponta a ponta.

 

Sendo assim, compete-nos sempre perguntar como se operou o golpe de Estado de 1o de abril de 1964. Mais: como se consolidou a aliança de classes e frações de classes para sustentar um regime ditatorial que durou mais de duas décadas. Que erros o governo João Goulart e o trabalhismo cometeram para que o golpe obtivesse sucesso, agravado pelo fato de que praticamente não houve uso da força militar ou policial naqueles idos de março/abril em um País que adentrava mansamente na obscuridade imprevisível de um regime sem prazo da validade. 

 

Comumente se atribui a organicidade politizada e ideologizada dos militares brasileiros no pré-64 à chamada Doutrina de Segurança Nacional (DSN). De fato, a DSN é um produto ideológico direto da Guerra Fria combinado aos tensionamentos geopolíticos do pós-Guerra, conformado na bipolaridade de forças identificados pelos EUA, de um lado, e a União Soviética, de outro.

 

No entanto, não foi exatamente a DSN o principal elemento fomentador da preparação intelectual e mobilizatória dos militares golpistas de 1964. Segundo estudos e pesquisas da historiadora francesa Maud Chirio1 e do professor João Roberto Martins Filho2, da UFSCAR, a teoria francesa da “Guerra Revolucionária” (GR) foi o grande orientador de parcela dos militares brasileiros, sobretudo através das escolas de formação, doutrinação e instrução, para a necessidade de combater a subversão iminente.

 

A teoria da Guerra Revolucionária surge nas forças armadas francesas depois das sucessivas derrotas na Península Indochinesa (Vietnã, Laos e Camboja) e os malogros nas guerras do Marrocos, Tunísia e Argélia. Vejam que tudo isso ocorreu na década de 1950, representando um duro golpe no extremado senso colonialista dos militares franceses, que, derrotados em todas as antigas colônias, trataram de formular um arcabouço teórico que respondesse às profundas feridas narcísicas provocadas pelas antigas possessões coloniais, onde exerciam o poder com grande crueldade e violência continuadas. O ressentimento remove as montanhas da razão, mas também trata de criar novos objetivos malévolos e perigosos. Antes de encontrar um inimigo concreto e real, a inteligência militar trata de construir a imagem de um inimigo ideal: o mal denominado “comunismo internacional”, que de comunista não tinha nada, muito menos de internacional.

 

Naquele momento, aos militares franceses, não importava saber se o líder soviético estava preocupado exclusivamente em construir o socialismo tão somente na URSS (tese de Bukharin, de 1925, seguida à risca por Stálin até a sua morte, em março de 1953).

 

Ainda no tumultuado governo do presidente Juscelino Kubitschek (1956-1961), com três tentativas de golpe de Estado por parte de militares, começam a aparecer artigos em publicações militares tratando abertamente do alegado problema da Guerra Revolucionária, sempre assinado por militares franceses, com destaque para os artigos do coronel Jacques Hogard (o artigo inaugural foi publicado em junho de 1958, intitulado “A tática e a estratégia na Guerra Revolucionária”, traduzido da Revue Militaire d’Information). As tentativas de golpe foram ações isoladas de indivíduos alucinados (vejam que Jair Bolsonaro sequer é original), mas que tentavam interpretar o sentimento majoritário da tropa e da própria nacionalidade. Tudo em vão. Mas não foi em vão, o lento despertar provocado pelos textos franceses, seguido pela adoção de disciplinas curriculares nas escolas militares (tanto de oficiais, quanto de cadetes) de conteúdos da teoria da Guerra Revolucionária. Construia-se, assim, a pavimentação da via expressa para o futuro golpe de Estado exitoso e de longa duração no Brasil.

 

Termina o governo JK e assume a presidência o meteórico Jânio Quadros (de janeiro a agosto de 1961), com João Goulart de vice-presidente. Naquela ocasião, o vice e o titular concorriam em chapas distintas, votava-se tanto para presidente, quando para vice, não necessariamente do mesmo partido.

 

Na renúncia de Jânio, assume Goulart, mas com veto militar explícito, superado pela Campanha da Legalidade e um período de regime parlamentarista, que foi um completo fracasso. Goulart chama um plebiscito e a opção presidencialista vence de forma constrangedora para os adeptos do parlamentarismo de fachada, a rigor, um biombo para esconder a vexaminosa e rançosa obstrução pessoal ao nome de Goulart, considerado um “subversivo” (seja lá o que isso queria dizer na boca dos militares) desde o tempo em que fora ministro do Trabalho de Getúlio Vargas, no início dos anos 1950.  

 

Nos bastidores, entretanto, setores militares de alta patente, trabalhavam o elemento orgânico e intelectual que sustentaria a futura conspiração direitista no País. E os colégios e escolas militares eram a vanguarda deste movimento subterrâneo, nervoso e incansável.

 

Neste ponto da já tensionada conjuntura da luta de classes, ocorre um cochilo imperdoável de Jango Goulart, do trabalhismo e dos setores do sindicalismo de esquerda que compunham a aliança janguista no poder. Nem Brizola, com o seu apurado feeling político, sentiu esse movimento silencioso do operativo militar clandestino. Pelo menos não há testemunho algum que confirme a hipotética preocupação do então ousado, corajoso e atento governador do Rio Grande do Sul.

 

O governo Goulart ao escolher os comandos militares das regiões também opera no sentido de afastar aqueles oficiais conhecidos que tinham alguma reserva em relação ao Jango e ao trabalhismo. Desta forma, acaba deslocando para cargos administrativos e escolas militares (todos sem tropa) justamente aqueles coronéis e generais mais preparados pela ideologia da GR.

 

Tanto assim que o coronel Octávio Costa, veterano da Segunda Guerra e considerado um intelectual da chamada Sorbonne (oficiais que tinham estreita relação com as escolas militares francesas) afirmou – em depoimento ao CPDoc da Fundação Getúlio Vargas – que o erro de Goulart foi justamente “asilar nas escolas os oficiais que não gozavam de sua confiança, na presunção que as escolas pouco representavam. Então, muito por culpa sua [de Goulart], as escolas ficaram abarrotadas dos melhores valores militares, como jamais acontecera. Esse erro facilitou a mobilização dos adversários, porque concentrou a inteligência militar na ESG e nas três escolas de Estado-Maior”.

 

Portanto, não era à toa que o general Emílio Garrastazu Médici foi o comandante da Academia Militar de Agulhas Negras, até o golpe de Estado de 1o de abril de 1964. Foi Médici, por óbvio, que introduziu a disciplina de teoria da GR no currículo da AMAN.

 

A ideia força dos militares politizados pela direita em combater o governo de Jango Goulart era a de superar aquela conjuntura adversa de qualquer maneira, nem que fosse pelo golpe de Estado. Era necessário, para tanto, a construção de um clima de “iminência revolucionária” que estava prestes a desmoralizar as Forças Armadas, corromper a nacionalidade e os valores democráticos, e comunizar o País de forma a torná-lo uma colônia da União Soviética. O fantasmo do anticomunismo foi invocado pela mídia, pela Igreja, por associações industriais, clubes de mães e demais entidades da sociedade civil. Era necessário legitimar o golpe de Estado que estava por acontecer, com o objetivo de torná-lo uma necessidade histórica e resultado do clamor nacional uníssono e coeso.

 

Nada muito distinto do que de fato aconteceu no golpe de Estado de 2016, com os seus antecendentes midiáticos sempre buscando pela legitimação antecipada do obscurantismo que estava por ser perpetrado contra a democracia e em desfavor da República.    

 

  1. Ver Maud Chirio, “A política nos quartéis – Revoltas e protestos de oficiais na ditadura militar brasileira”. Editora Zahar, 2012.
  2. Ver João Roberto Martins Filho no portal www2.ufscar.br/uploads/forumgolpistas.doc

 

Acessar também:  http://www.arqanalagoa.ufscar.br/abed/Integra/Rodrigo%20NABUCO%20DE%20ARAUJO%2031-08-07.pdf

 

 

Cristóvão Feil, sociólogo

  Em 1o de abril de 2019