O racismo no Brasil não tem paciência para dar UM MINUTO de silêncio a uma liderança negra religiosa.


 

 

 

 

 

 

 

 

Você ri da minha pele

Você ri do meu cabelo

Saravá, sou sarará, e assim quero sê-lo (quero sê-lo)

Já é tempo de sonhar

Superar o pesadelo

Ninguém mais vai nos calar e acorrentar o meu tornozelo

Sou rainha de Sabá

A coroa é o meu cabelo

O meu canto milenar

Ninguém pode interrompê-lo

Minha dor é de cativeiro

E a sua é de cotovelo

Minha dor é de cativeiro

E a sua é de cotovelo

(Trecho da música Raízes, Negra Li)

 

 

“O racismo no Brasil não tem paciência para dar UM MINUTO de silêncio a uma liderança negra religiosa”, com essa frase Wilma Reis, ouvidora-geral da Defensoria Pública, sintetizou a ato criminoso praticado pela parlamentar baiana, Marcelle Moraes, quando pouco depois de ser respeitado um minuto de silêncio no Plenário Cosme de Farias pelo falecimento de Makota Valdina, a vereadora pediu para “incorporar” à homenagem a morte de uma “rinoceronta” no zoológico de Salvador. “Para me aliar a um minuto de silêncio que o vereador Marcos Mendes pediu, em respeito à questão do falecimento, mas também em respeito ao falecimento da rinoceronta que morreu. Queria deixar registrado que hoje fiquei sabendo, infelizmente, que não foi caso de velhice, foi negligência. […] Então eu incorporo também esse minuto de silêncio a infeliz morte da rinoceronta”, afirmou a vereadora.

O ato da vereadora Marcelle Moraes (Sem Partido) ter aproveitado o ensejo do minuto de silêncio na Câmara de Salvador pelo falecimento da líder religiosa Makota Valdina para pedir silêncio pela morte de uma fêmea de rinoceronte no Zoo de Salvador ainda repercute de forma negativa para a vereadora. O ato foi visto pelo movimento candomblecista como uma ofensa. Mesmo após ter pedido desculpas e ter dito que não tinha a intenção de ofender as religiões de matrizes africanas, a irmã do deputado Marcell Moraes (PSDB) foi alvo de manifestação na galeria popular. “Racistas, facistas, não passarão”, gritavam os manifestantes de costas no Plenário Cosme de Farias nesta segunda-feira (25).

Vilma Reis, ouvidora-geral da Defensoria Pública, esteve com o grupo de manifestantes e disse que Marcelle cometeu um ato “muito grave”. “Estamos chocados. A partida de Makota Valdina, uma mulher que dedicou 75 anos da vida dela contra o racismo religioso. Makota formou gerações neste país”, acusando a vereadora de estar agindo por vingança. “Porque há seis anos Makota derrotou essa família aqui nesse plenário porque eles queriam criminalizar o ato de alimentar o sagrado em Salvador. É exatamente em Salvador que essas pessoas fazem sua carreira política em cima do sangue do povo negro”, falou.

Valdina Pinto de Oliveira nasceu em 15 de outubro de 1943 no bairro do Engenho Velho da Federação, na cidade de Salvador, Bahia. Sempre morou neste bairro que é, ainda hoje, um local onde a maioria da população é negra, e onde a presença de comunidades de terreiro de Candomblé é marcante. Desde a juventude, Valdina Pinto esteve envolvida com ações sociais na sua comunidade, acompanhando seu pai, Paulo de Oliveira Pinto – Mestre Paulo – ou sua mãe, Eneclides de Oliveira Pinto, mais conhecida como D. Neca, que foi líder comunitária e primeira referência política da filha.

Da adolescência à fase adulta, junto com a sua família, com a Associação de Moradores e com a Igreja Católica do Bairro, Valdina Pinto desenvolve diversas atividades assistenciais à população, logo se concentrando na alfabetização de adultos como principal área de trabalho. Quando vem a se formar pelo antigo Instituto Educacional Isaías Alves (IEIA), atual ICEIA, em 1962, já era uma educadora atuante e conhecida na própria comunidade. Ensinou na sede da Associação de Moradores, ensinou em barracão de terreiro de candomblé, ensinou em escolas, e até na própria casa. Por seu trabalho educacional na comunidade, é convidada pelo Corpo da Paz para lecionar Português nas Ilhas Virgens a um grupo de estrangeiros que viria ao Brasil – e aqui começa a desenvolver a noção do valor que suas referências étnico-culturais têm para fora da comunidade em que vive. Como professora do ensino fundamental do município de Salvador, Valdina Oliveira Pinto se aposenta no final da década de 80, A sina de ser quem dá a lição continuará acompanhando a sua trajetória.

No início da década de 70, Valdina abandona o catolicismo, e em 1975, é iniciada na religião do Candomblé. No Terreiro Tanuri Junsara, liderado pela Sra. Elizabeth Santos da Hora, ela é confirmada para o cargo de Makota – assessora da Nengwa Nkisi (Mãe-de-Santo). Com a iniciação, recebe seu nome de origem africana, tornando-se a Makota ZIMEWAANGA.

A iniciação numa religião de matriz africana impõe a Valdina Pinto uma revisão da sua história e da cultura na qual havia sido criada. Todo um conjunto de práticas cotidianas vivenciadas por ela desde a infância no gueto negro do Engenho Velho da Federação passa a adquirir novos significados, importância e sentidos a partir das lições aprendidas no terreiro de candomblé.

Entre 1977 e 1978, Valdina Pinto integra a primeira turma do Curso de Iniciação à Língua Kikongo, ministrado pelo congolês Nlaando Lando Ntotila no Centro de Estudos Afro-Oriental (CEAO), marcando uma nova etapa no aprofundamento dos seus estudos sobre as culturas de origem bantu no Brasil – sobretudo nos aspectos religiosos. A valorização das especificidades da nação de candomblé angola-congo, de matriz bantu, tem sido uma das marcas da trajetória de Valdina Pinto que, por isso, passa a ser conhecida como Makota Valdina.

Outro pensamento da Makota Valdina é de que a comunidade de terreiro não deve fechar-se em si mesma, buscando, ao contrário, relacionar-se com os organismos políticos e sociais externos que sejam necessários à manutenção e consolidação das tradições vivenciadas no terreiro – tradições que, por outro lado, ela defende que sejam, estas sim, resguardadas exclusivamente ao contexto religioso de quem as pratica. Vale ressaltar que, ainda em tempos de ditadura política no Brasil, a Makota Valdina tornou-se a primeira mulher a presidir a Associação de Moradores do seu Bairro, enfrentando preconceitos políticos e de gênero, dada a suas inclinações oposicionistas e ao fato mesmo de estar numa função até então ocupada por homens.

Estas compreensões – que estão na base da sua formação – levaram-na a compor, durante alguns anos, a diretoria da Federação Baiana de Culto Afro Brasileiro (FEBACAB), atual FENACAB. Nesse período, seu respeito e preocupação com as tradições do Candomblé, independente da nação, tornaram-na mais conhecida e considerada junto aos praticantes do candomblé. Antes de terminar sua gestão, filia-se às lutas em defesa do Parque São Bartolomeu, um antigo santuário natural do povo-de-santo de Salvador. O Parque, uma extensa reserva urbana da Mata Atlântica, definhava ante a depredação por parte das pessoas e o silêncio dos poderes públicos. Com outras educadoras, a Makota Valdina desenvolve programas de educação ambiental, destacando a perspectiva religiosa acerca da natureza – “A natureza é a essência do candomblé”, ensinava. Desta luta surgiu o Centro de Educação Ambiental São Bartolomeu (CEASB), onde foi educadora e conselheira. Um outro trabalho importante do qual esteve à frente foi a catalogação e plantio de ervas medicinais em áreas do entorno do Parque São Bartolomeu, no subúrbio de Salvador.

Perifraseando-a, podemos dizer que “o candomblé é a essência da Makota Valdina”. Fincada nestas tradições religiosas, ela tornou-se um instrumento de expressão da sabedoria popular baiana, brasileira, de base africana. Como é próprio de uma visão de mundo dessa origem, os conhecimentos e habilidades da Makota Valdina – o seu savoir-faire – se articulam e interagem constantemente, e não se estancam, ou se resumem a uma determinada dimensão do saber. Nela, reflexões filosóficas acerca da cosmogonia do Candomblé, mais especificamente os de origem bantu, coabitam com um apurado senso estético na execução de danças, ou confecção de artesanatos rituais; ao domínio da culinária, ou do uso de ervas, une-se um repertório de cantigas sagradas de rara extensão.

Em Fevereiro 2003, a Makota Valdina foi a porta-voz das religiões de matriz africana de Salvador num encontro com o então recém empossado Ministro da Cultura, Gilberto Passos Gil Moreira, como também foi uma das representantes do Movimento Contra a Intolerância Religiosa em Brasília, em março do mesmo ano, sentando-se à mesa da Câmara dos Deputados, na histórica sessão presidida pelo Deputado Federal Luiz Alberto.

Com a sua palavra calma e firme, que ilumina, com a sua indignação veemente que entusiasma, a Makota Valdina tem impressionado inúmeras platéias nas conferências e palestras que realiza no Brasil ou no exterior. Mas, como faz questão de frisar, no cotidiano das suas relações num terreiro de candomblé, está o seu local predileto de ensino e aprendizagem.

Diversas são as instituições que a tem como conselheira, ou ‘madrinha’, como é o caso da Associação de Preservação e Defesa do Patrimônio Bantu (ACBANTU). Noutros casos, é o próprio nome que empresta à causa da luta contra o racismo, como ao Grupo de Estudantes Universitários Makota Valdina.

Valdina Pinto já recebeu diversas condecorações por seu papel na preservação do patrimônio cultural afro-brasileiro, como o Troféu Clementina de Jesus, da União de Negros Pela Igualdade (UNEGRO). Troféu Ujaama, do Grupo Cultural Olodum, em Agosto/2004, recebeu a Medalha Maria Quitéria, a maior honraria da Câmara Municipal de Salvador, em dezembro de 2005 recebeu da Fundação Gregório de Mattos o Troféu de Mestra Popular do Saber.

Valdina Oliveira Pinto, a Makota Zimewaanga, a Makota Valdina é, atualmente, a conselheira ‘mor’ da Cidade de Salvador, convidada a avaliar e avalizar plataformas de governo, campanhas eleitorais e mandatos parlamentares, ou ONG’s e eventos em defesa das tradições de origem africana e do Meio Ambiente. É também chamada a orientar grupos do Movimento Negro e a sistematizar propostas educacionais que dêem conta da diversidade cultural da cidade. Enfim, tornou-se presença quase obrigatória nos principais debates sobre os rumos da sociedade e, sobretudo, nos espaços reservados do sagrado, onde só têm acesso livre aquelas que se tornaram uma mais velha e trazem no corpo, no conhecimento e nos próprios sentimentos marcas ancestrais.

Vítima de disfunção renal aguda, a militante e educadora Makota Valdina morreu, aos 75 anos, na madrugada desta terça-feira (19) no Hospital Teresa de Lisieux, em Salvador. A assessoria da unidade emitiu uma nota informando que há um mês a ativista já havia sido diagnosticada com problemas renais e abscesso hepático.

Em 2013, Makota publicou o livro “Meu caminhar, meu viver”, em celebração ao mês da consciência negra, reunindo uma série de escritos que fez ao longo da vida. O documentário “Makota Valdina – Um jeito Negro de Ser e Viver”, retratou sua vida e foi premiado na categoria Programas de Rádio e Vídeo durante a primeira edição do Prêmio Palmares de Comunicação, da Fundação Cultural Palmares.

 

 

 

Documentário: https://www.youtube.com/watch?v=sa0HXc48ylE&feature=youtu.be

 

Referências:

http://bahia.ba/politica/maes-de-santo-prometem-acionar-mp-ba-contra-marcelle-moraes/

http://www.justificando.com/2019/03/28/a-morte-de-makota-valdina-e-a-falsa-oposicao-entre-direitos-dos-animais-e-as-religioes-afro-brasileiras/

http://negrobelchior.cartacapital.com.br/morre-makota-valdina-lider-religiosa-e-militante-da-causa-negra/

https://www.bnews.com.br/noticias/politica/politica/231624,candomblecistas-fazem-manifestacao-na-camara-de-salvador-contra-vereadora-marcelle-veja-videos.html

http://bahia.ba/politica/vereadora-aproveita-minuto-de-silencio-por-makota-valdina-para-lamentar-morte-de-rinoceronta/?fbclid=IwAR39pw-1aH0mG_4WOBKh7fvjs4BAB34aTaeFkbLcHdP_scWqn37lH2vXyHc

https://jornalggn.com.br/direitos/a-cultura-afro-brasileira-e-a-historia-de-makota-valdina-pinto/

 

 

 

Michele Corrêa

Graduanda em Filosofia na UFPel, Feminista Negra,

Assessora da Pastoral da Juventude (PJ) e

Militante do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA)