O triste abismo da Pátria dos Meninos Sem Pátria
Autor: Leonardo da Rocha Botega
Entre a metade dos anos 1980 e o início dos anos 1990 a rotina de nossa casa periodicamente era abalada por um acontecimento ansiosamente esperado: o anúncio da chegada dos livros da Coleção Vagalume. Foram através deles que a minha imaginação foi se despertando para a aventura da leitura. Em meio as revistas “Nosso Amiguinho”, as Revista em Quadrinhos (preferencialmente de super-heróis como o Hulk e o Homem Aranha), “A Turma da Rua Quinze” de Marçal Aquino, “O Rapto do Garoto de Ouro” de Marcos Rey, “Zezinho: o Dono da Porquinha Preta” de Jair Vitória, “Éramos Seis” de Maria José Dupré, “Aventuras de Xisto” de Lúcia Machado de Almeida, “Tonico e Carniça” de Assis Brasil e José Rezende Filho, entre outros belíssimos livros, povoaram a inquietude de um leitor em formação. Em meio a estes, um em especial me emocionava muito: “Meninos Sem Pátria” de Luiz Puntel.
A narrativa daquele menino que, assim como o leitor, entrava na pré-adolescência e nas tensões de um mundo dividido entre as brincadeiras e o início dos estranhos sentimentos de amadurecimento, criavam em mim uma ideia do que seria não pertencer a lugar algum e o desejo de pertencer a algo. Cada frase refletia a sensação de que vivíamos os mesmos dilemas, porém com uma diferença profunda: eu tinha uma casa, um lugar para chamar de meu, uma Pátria que, entre erros e acertos, sonhava o seu futuro. Marcos não. Sua família fora obrigada a sair do país, pois seu pai fazia o trabalho que muitos jornalistas e empresas jornalísticas (que lucraram e cresceram lambendo as botas do silêncio) não faziam: denunciava à corrupção ou a qualquer outro ato fora da lei.
Ousou lutar contra a construção da imagem da força que colocava a verdade nos porões da tortura e por isso foi abrigado a vagar de país a país, de golpe em golpe, até se abrigar na França, onde os ideais de igualdade, liberdade e fraternidade abriram as portas para inúmeros fugitivos da barbárie. Aquela narrativa me comoveu muito! Os relatos das partidas e das despedidas, da saudade, dos amores adolescentes rompidos pelo não-pertencimento a lugar algum, faziam com que de alguma forma Marcos fosse um amigo a quem eu gostaria de abraçar. Alguns anos depois soube que essa sensação tinha nome e conceito: Empatia!
Aquela leitura me tornou humano, mas acima de tudo, humanizante e humanizado. Somos humanizantes e humanizados quando olhamos para os dramas alheios e nos aproximamos dele. Quando sentimos a força do poder que silencia o diferente e que em algum momento o diferente pode ser eu, você, um amigo seu, um familiar ou até mesmo aquele desconhecido que um dia comemorou contigo a vitória do time de futebol ou te desejou um feliz ano novo na saída de uma loja. Infelizmente, essa condição não é inerente a todos os humanos e requer a consciência de que nem sempre “os fins, justificam os meios”, de que a censura não é o melhor caminho para uma vida ética.
Uma consciência que não esteve presente em um grupo de pais do Colégio Santo Agostinho Leblon, no Rio de Janeiro, que pressionaram pela exclusão de “Meninos Sem Pátria” da lista de leituras de seus filhos, alunos do 6º ano daquela escola. Acusando o livro de “doutrinação comunista”, “discurso esquerdopata” (sabe-se lá o que é isso), talvez sem nem ao mesmo terem lido, reproduziam a aristocrática ignorância do “pago e posso definir o que o meu filho deve ou não ler na escola”, pouco importando o conhecimento de quem fica anos e anos estudando sobre o fazer pedagógico para definir a escolha dos conteúdos a serem inseridos em um currículo escolar. O Brasil é um país onde muitos dizem que defendem a educação, mas poucos valorizam o conhecimento de quem estuda. Por isso, somos obrigados constantemente a exercer a difícil tarefa de defender o óbvio.
Em um país onde 44% da população não lê sequer um capitulo de livro, onde 30% da população nunca comprou um livro, onde disciplinas como História, Sociologia, Literatura e Filosofia são na maior parte das escolas renegadas a sobra de horários na distribuição das disciplinas, o caminho esta sempre aberto para a barbárie absurdamente justificada pela arrogância ignorante de quem considera defender direitos humanos um “crime” mais nocivo do que a própria tortura. Num dos países que mais mata militantes humanistas no mundo, negar as novas gerações o conhecimento humanizado significa aprofundar o abismo de uma pátria que num passado não tão distante produziu inúmeros “meninos sem pátria” e aceitar que um dia isso possa se repetir! Isso não! Isso nunca!
Leonardo da Rocha Botega
Professor de História do Ensino Básico,
Técnico e Tecnológico da UFSM