Quem está de fato no poder na Nicarágua?


Na última semana de novembro de 2017, o ex-presidente uruguaio Pepe Mujica estava no Panamá para receber um “doutorado honoris causa” de uma Universidade local. No dia seguinte, Mujica tinha compromisso em Manágua. Igualmente receberia um doutorado honorário, desta vez da Universidade Autônoma da Nicarágua. Mas à noite foi surpreendido por um comunicado da própria Universidade. O evento havia sido cancelado pelo presidente Daniel Ortega, sem menores ou maiores explicações. Mujica estava sendo rechaçado da Nicarágua orteguista, ex-sandinista.

Este episódio aparentemente pequeno (ocultado pela mídia internacional, ver aqui: https://www.laprensa.com.ni/2017/11/24/politica/2336377-la-unan-suspendio-homenaje-expresidente-uruguay-pepe-mujica) encerra valores simbólicos que demonstram a guinada de Daniel Ortega para uma perspectiva política de poder que podemos classificar de direita. Pior ainda: uma direita repressiva e sanguinária, adornada pelo bordão cínico e mentiroso: “Nicaragua, cristiana, socialista y solidaria”.

Como se vê o neo-caudilho Daniel Ortega e a sua mulher, a esotérica Rosario Murillo, insistem em se identificar falsamente com o socialismo e a solidariedade. Já a identificação religiosa é mais recente: vige desde que Ortega fez um pacto de mútuo interesse com o reacionário cardeal Obando Y Bravo, uma legenda do pensamento somozista e conservador no País. No final de 2006, Ortega fez os seus deputados na Assembleia Nacional votarem a favor da criminalização do aborto. Satisfeita a exigência do príncipe local da Igreja, meses depois, em novembro de 2006, Daniel Ortega se reelege presidente do bravo e valente País centro-americano.

A consigna propagandística de cunho religioso e aludindo ao socialismo é um despropósito total. Uma coisa não bate com a outra. Desde o ponto de vista da esquerda, o Estado deve ser laico. Não pode definir-se confessional, para agradar o senso comum hipoteticamente ingênuo e apegado a valores tradicionais, ao apelar para emoções e crenças que devem ser vividas pelos indivíduos na sua vida privada. Essa mescla oportunista é reprovável sob qualquer aspecto.

A dupla Daniel e Rosario sustentam ainda a consigna socialista como forma de manter o discurso segundo o qual seriam vítimas da ingerência direta e interferência indireta das garras do imperialismo estadunidense. O socialismo – ainda que de fachada – funciona como uma vacina que visa prevenir o mal estar incubado na maioria da população trabalhadora da Nicarágua.

Outra vacina que funciona como preventivo do casal no poder é a insistência em se proclamar sandinista. O sandinismo está fora do poder há muito tempo. O que perdura é o orteguismo-murillista repressor e corrupto.

O grande racha no Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) ocorreu logo depois da derrota eleitoral de 1990. Foi um marco decisivo: dividiu a revolução sandinista entre o antes e o depois, entre o período de construção sandinista, e o período de degradação e desmonte operado pelo caudilhismo orteguista. Naquele então, 1990, houve uma distribuição arbitrária de propriedades entre os dirigentes do FSLN. Alegava-se que a organização não podia restar sem recursos necessários para trabalhar na oposição. Alguns comandantes conhecidos se tornaram sócios ou proprietários integrais de hotéis, empresas de pesca, grandes extratoras de madeira, atividades agro-industriais e até de bancos.

Um escândalo nacional que impactou negativamente a imagem do casal Ortega/Murillo foi o caso conhecido como Zoilamérica Narváez, filha política de Ortega e filha biológica de Rosário Murillo. Em 1998, a moça Zoilamérica denunciou Daniel Ortega de abuso sexual continuado por onze anos a fio. Sua mãe, Rosario, deu apoio ao marido Daniel, abandonando a própria filha à execração moral do conservadorismo local.

Outro pacto com o diabo, ou barganha faustiana, como vocês quiserem, de Daniel Ortega foi a aliança espúria e interessada com o ex-presidente nicaraguense de direita Arnoldo Alemán, considerado um dos chefes de Estado mais corruptos do mundo, tendo saqueado cerca de cem milhões de dólares da Nicarágua, conforme registro de observadores internacionais. Alemán foi condenado a vinte anos de prisão por seus crimes contra o interesse público, mas não ficou um dia sequer preso, tendo sido beneficiário de manobras de magistrados orteguistas para livrá-lo do cárcere. A Daniel sempre interessa essas anistias brancas, uma forma pragmática de fazer com que seus aliados (ex-adversários) ficassem em dívida com ele, de modo a tê-los sempre sob o seu controle estrito e conveniente.

Mas a derrocada orteguista não se deve, por óbvio, somente por cupidez estrita do casal protagonista. Há que lembrarmos da onipresença dos Estados Unidos na região, uma história que começa ainda no final do século 19 e se estende até os presentes dias.

Como lembra o cientista político espanhol, Iosu Perales, “hoje, as armas dos EUA na região e na Nicarágua em particular, não disparam balas, têm nome de USAID (Agência USA para o Desenvolvimento Internacional), NED (Fundação Nacional para a Democracia), assim como outras instituições que lá operam”. Mais: “estas instituições se infiltram no cenário nacional e influem em organizações da sociedade civil e da oposição política, em primeiro lugar como forma estratégica de estar presente em espaços-chave, e em segundo lugar, com a intenção de fomentar novas lideranças nacionais. Para tanto, contam com uma arma estratégica: o dinheiro que investem”, completa Perales.

Na presente conjuntura crítica, acresce ainda os massivos protestos de massa contra o corte de 5% nas aposentadorias dos trabalhadores, agravado pelo aumento das contribuições previdenciárias tanto para os assalariados, quanto para os empregadores. O governo, não contente em eliminar direitos sociais, e ao invés de remeter o projeto para o debate parlamentar, preferiu autocraticamente impor as medidas por decreto presidencial.

O resultado temos assistido todos os dias na TV, que não conta a mínima parte dos bastidores da chapa-quente nicaraguense.

Recentemente, os chineses retiraram seus investimentos na construção de um canal de navegação e transporte que uniria o Atlântico ao Pacífico, uma forma de concorrer com o canal estadunidense do Panamá. Outro elemento negativo que coloca mais gasolina na explosiva Nicarágua orteguista. Certamente, a China examinou o contexto geopolítico da empreitada (que lhe custaria a bagatela de 40 bilhões de dólares), vis-à-vis com um governo enfraquecido, ditatorial e disposto às mais heterodoxas maneiras de se manter no poder.

Para um bom entendedor das atuais relações internacionais e da geopolítica de novos polos de influência e decisão estratégica, seja militar, seja comercial, a prudência e o recuo da China é um bom indicador da situação periclitante e temerária de Daniel Ortega/Rosario Murillo no poder.

A repressão assassina de Ortega recrudesce a cada semana (280 mortos nos últimos dois meses), bem como do lado oposto ao Governo, a resistência popular massiva (que raramente é homogênea e sem vetor único), seja aquela autênticamente sandinista, seja a falsa resistência dos infiltrados agentes do imperialismo estadunidense.

 

 

Cristóvão Feil

Sociólogo

23/07/18