Sepé Tiaraju e a identidade gaúcha


(ilustração de Sepé integrante da publicação “Sepé tiarajú: herói guarani, missioneiro, riograndense e, agora, herói brasileiro”, editada pela Câmara dos Deputados)

Já entre os gregos, há vinte e cinco séculos, a narrativa – e a memória nela transmitida – tinha importância decisiva na formação da identidade humana. Assim, contava-se que em Tebas uma esfinge desafiava a cidade: “Decifra-me ou devoro-te!” E, enquanto a questão não era resolvida, exigia sacrifícios periódicos de preciosas vidas humanas. O enigma consistia em saber quem seria o animal que anda com quatro pernas pela manhã, com duas ao meio-dia e com três à tarde. Ora, “é o ser humano”, decifrou Édipo, livrando a cidade da sua assombração ao considerar o arco da aventura humana neste mundo, decifragem de vida ou morte. Pois o Rio Grande do Sul e a identidade gaúcha têm uma esfinge de duas faces: “São” Sepé Tiaraju e o Negrinho do Pastoreio.

 

Identidade de fronteira.                                                                                                                       

A identidade gaúcha está marcada pela violência da fronteira, desde bem antes da demarcação final das fronteiras, dos inícios do século XIX, que não deixou de ser uma demarcação belicosa[1]. É, em conseqüência, uma identidade “fronteiriça”, de “frontes” e “confrontos”, ambiguamente belicosa e hospitaleira ao mesmo tempo. Moldou-se à luz de uma relação perigosa de incursões, de conquistas e de defesas, de vigilância dificultada pela vastidão pampeana, quase uma “terra de fundo”, corredor para bandeirantes e castelhanos. Sem contar com o que há de mais primário, até originário, na figura gaúcha, que são os desgarrados de ambos os lados, os “vagos”, que andavam sem querência nem pátria definida, peões e gaudérios sem laços e sem autoridades, o gaúcho descrito no personagem Martin Fierro, de Hernandez.

Mesmo depois de sua definição, o Rio Grande do Sul (RS) permanece com uma tendência obsessiva, repetitiva, inclinada a um dualismo de fronteira, dividido entre companheiros e inimigos, resolvido na “degola”. “Ximangos e maragatos”, no confronto da Revolução Federalista de 1893-95, são figuras desse dualismo repetitivo que vem de antes ainda da Guerra Farroupilha (1835-1845), e se repete mimeticamente, numa reciclagem de formas mais sofisticadas de degola “da outra metade”, avatares que consomem muitas energias, desencantam sonhos e travam possibilidades de verdadeiro progresso com paz para todos até nossos dias. Nas batalhas políticas, por exemplo, em que estamos sempre belicosamente divididos e querendo calorosamente o pescoço do adversário. Na questão fundiária, na luta pela terra, nosso calcanhar exposto, nem se fala. Mas o que seria do gaúcho e da sua hombridade sem um inimigo, sem uma “peleia”, sem um confronto, sem uma arma? É só pisar no pala que o revólver fala, como cantava Teixeirinha.

 

Vícios de interpretação

Uma real pacificação do Rio Grande do Sul precisa começar com a reabertura de um doloroso dossiê de suas origens, um dossiê escondido do ponto de vista político, acadêmico e religioso.

  1. a) Político: com Júlio de Castilhos, no final do século XIX, abriram-se as portas da aristocracia de Porto Alegre para o positivismo e para o novo regime republicano, que deveria ser higienizado de toda barbárie e integrado numa primeira onda de modernidade brasileira. A imposição também belicosa do positivismo republicano, um facho de iluminismo na capital, confrontava-se com os latifundiários orgulhosos de sua autonomia no campo, e deste confronto jorrava sangue com degola campo afora. Esse idealismo castilhista permitiu à nossa política de fronteira ser tanto o vanguardismo da Ordem e do Progresso como o berço da ditadura a ferro e fogo[2].
  2. b) Acadêmico: o positivismo ou cientificismo acadêmico escondeu ou varreu da história e da formação da identidade gaúcha tudo o que poderia envergonhar a aristocracia, tudo – ou quase tudo – o que se conta na memória popular cabocla, bugre e negra, remanescente do extravio indígena e da escravidão africana em nossas terras. Os heróis e seus monumentos foram selecionados sob o crivo de uma modernidade branca e gloriosa. Lendas, mitos, “causos”, essas formas de resistência da memória dos dominados e envergonhados pela cultura oficial, foram desclassificadas como incapazes de servirem de documentação ou ao menos como indícios de verdades históricas de um Rio Grande profundo e escondido. As belas histórias populares só poderiam ser invenções de intelectuais românticos, segundo esta interpretação pedante. E, ironicamente, quando, em meados do século XX, a historiografia começou a desvestir os heróis e seus feitos, ainda assim não permitiu distinguir entre os heróis vencedores – de tradição grega, em que verdade e vitória coincidem – e os “heróis” dos vencidos, transmitidos pela narrativa popular cheia de símbolos e sinais de transcendência humana, como o “lunar de Sepé” que se tornou o Cruzeiro do Sul. Alguns personagens, como Blau Nunes das narrativas criadas por Simões Lopes Neto, são mais o “anti-herói”, personagem honesto e pobre, contente com seu cavalo sem pretender grandes feitos. Sem entender que a narrativa popular interpreta o outro lado da história e que provoca resistência e faz caminho na história dos que não constam na história oficial, a historiografia simplesmente colocou todos os heróis no mesmo balaio. Todos criados por interesses de intelectuais! Assim, dos heróis populares, como Sepé Tiaraju, não sobraria quase nada nessa máquina de tortura historiográfica.
  3. c) Religioso: o catolicismo romanizado, por sua vez, ergueu a catedral de Porto Alegre sobre cabeças de figuras indígenas esmagadas – outra forma da degola – como símbolo da vitória sobre a antiga superstição. É um gesto simbólico de enorme violência religiosa que ainda necessita, conforme os últimos Papas, de “purificação da memória” e de redenção aos pés dos sobreviventes e de seus mortos. A ambigüidade do elemento religioso, desde os tempos das próprias Missões, provocou heroísmo, como, por exemplo, a possibilidade de sobrevivência indígena com alguma dignidade e sem escravidão dentro do ventre dos impérios ibéricos na forma de um sincretismo missioneiro, mas também jogou cada vez mais no dilúvio da superstição tudo o que não viesse da religião do branco civilizado e cada vez mais romanizado.

 

A fachada e os fundos da alma gaúcha

A alma e a mística dos povos nativos, indígenas, e dos povos afro-descendentes se refugiaram e se sintomatizaram no “causo”, na pajeação, na narrativa simplesmente oral, e numa certa literatura. Um bom exemplo, seguido por admiráveis gaúchos de sensibilidade e talento, é Simões Lopes Neto, que teve o cuidado de dar forma literária à sua paciente escuta e às suas notas junto à gente simples do povo e suas memórias. Interpretar suas informações apenas como recurso literário para justificar algum populismo literário seria uma violência intelectual. É também pretender exagerado poder ao intelectual, como criador de mentalidades populares. Ora, quem conhece o povo sabe que há uma saudável resistência e desconfiança diante do “doutor” e seus raciocínios. É mais justo interpretar pelo avesso, como Simões Lopes Neto confessa: que se enriqueceu muito em ouvir inclusive velhas do povo.

A identidade gaúcha foi sendo breteada para a estância. E ganhou, depois, já em meados do século XX, passando do campo para a cidade, na criação dos Centros de Tradição Gaúcha (CTG), uma forma de estetização ritual e controle da violência do dualismo perigoso que insiste em perseguir e criar curtos-circuitos no campo e na cidade. O CTG reproduz, mesmo na cidade moderna, a antiga estância, a paisagem do campo já domada pela estância e pela estratificação entre patrões, capatazes, peões, as mulheres sendo “chinocas” e prendas dos homens. A ambigüidade dos CTGs, criados num esforço de afirmação e também de terapia da identidade, que reproduz esteticamente, ritualmente, ao mesmo tempo busca controlar a violência gaúcha de faca na bota, de lenço branco ou colorado, de cartuxeira e lança, controle que acontece exatamente através do ritual da violência, sua encenação. Parece, no entanto, não dar mais conta das novas disseminações de violência e de vontade de degola como solução radical. Estamos, também na área urbana, cada vez mais “pisando no pala” e cada vez mais “o revólver fala”.

 

A violência e a chance da identidade que assombra

Em tempos de alta disseminação e contaminação, é necessário um remédio homeopático, buscando nas fontes do veneno o próprio remédio. Se não for assim, começa-se a tentar soluções radicais, cujo modelo perfeito é o linchamento.

Mas não é, propriamente, nas lendas e nos causos, nas figuras míticas, nos gemidos que ainda se escutariam nas regiões das charqueadas ou das regiões missioneiras que estão as assombrações a nos gelar a espinha. Estão vivas nos rostos indiáticos e negros, mestiços e caboclos – tudo o que passa de branco – que jazem vivos como esfinges nas periferias, nas vilas e nos ônibus da área metropolitana, arranchados por todo canto nas periferias das cidades, identidades desgarradas, normalmente silenciosas, exceto na inquietação adolescente e nos sofrimentos excessivos, na vergonha e no desprezo insuportáveis, e sobretudo na falta de futuro e dignidade por falta de trabalho. Esses rostos e esses corpos não são tão visíveis para a aristocracia, seja ela acadêmica, política ou eclesiástica, que anda a cavalo com vidro fume, cada vez mais protegida, e que não circula pelas periferias ou de ônibus de vila como os “peões” calejados ou desgarrados.

Se culturalmente e socialmente, em nosso meio, “quem passa de branco, negro é”, o mesmo se pode dizer dos descendentes indígenas mestiçados campo a fora e nas periferias onde está o “pobrerio”, como diria Simões Lopes Neto. E há multidões ao nosso redor, quando se decide observar melhor. Desmemoriados por um lado, mas continuando a contar suas narrativas por outro, sem mesmo saber bem por que. Os vazios de suas memórias e a baixa auto-estima de seus rostos ou cabelos e sotaques, do seu fraseado e suas “tiradas”, são ingredientes perigosos para a violência indomada do gaúcho. Mas suas narrativas e sua sabedoria, como bem percebeu o mesmo Simões Lopes Neto, são a resistência de uma dignidade anterior a todo dualismo fronteiriço, a possibilidade da hospitalidade de um “terceiro” que sempre foi vítima de ambos os lados, e que tem o segredo da remissão e da reconciliação – as vítimas sobreviventes que têm o poder de resgatar os vencedores manchados de sangue. Contanto que tenham chance de resgatar sua auto-estima no reconhecimento de sua dignidade.

O reconhecimento desses “terceiros” anteriores, batidos e vitimados entre a rocha e o mar do dualismo de fronteira gaúcha, e a reconciliação real e completa a partir dos vivos remanescentes, comporta, no entanto, que não se deixe de fora os que foram mortos. Onde há vítimas que foram mortas, os seus vivos só podem se reconciliar e perdoar se os mortos, em comunhão com os vivos, assinalam que também perdoam. Os vivos, em si, não têm poder de perdoar em nome dos mortos. Onde há mortos, como no exemplo doloroso do Oriente Médio atual, é complicado superar a exigência e a dignidade da vingança justa em favor de uma reconciliação com nova oportunidade para todos.

É o caso de Sepé Tiaraju, uma das figuras ao mesmo tempo históricamente real e, no entanto, sobretudo, legendária porque incorpora uma multidão de rostos, olhos e corpos, sentimentos e almas que nos assombram mas que podem ser a nossa chance.

 

Sepé Tiaraju: com o Negrinho do Pastoreio, o “sacrifício fundante” da identidade gaúcha?

Se o alferes e depois corregedor (ou apenas capitão) da cidade missioneira de São Miguel fosse apenas o mito trágico e brilhante em que se tornou, se fosse apenas uma lenda com sucesso, como o Negrinho do Pastoreio, se São Sepé estivesse mais para São Jorge ou Santo Expedito do que para Santo Antônio, ainda assim, e exatamente assim – como mito fundante e significante – teria uma importância histórica e hagiográfica, sagrada, decisiva na formação da identidade gaúcha.

De Santo Antônio se sabe que a sua história pessoal é muito diferente das narrativas e crenças em torno de sua figura popular. Ele é história e mito ao mesmo tempo. Mas o mito, as narrativas lendárias, tem mais capacidade de produzir história ao longo das gerações do que sua historiografia pessoal. Já São Jorge e Santo Expedito não têm sequer registros históricos, apenas narrativas e fábulas populares. Como o Negrinho do Pastoreio, eles representam um grande número de soldados que fizeram objeção de consciência, que disseram “não” à violência institucional do Império Romano e do seu exército, portanto lutaram com o “dragão” e foram executados como “anti-heróis”. Na dureza da historiografia, foram todos justamente mortos. Mas se tornaram memória da força dos que aparentemente não têm força nenhuma, dos que não tem poder mas tem uma grande verdade. Na dura história foram vítimas, martirizados por seus ideais, mas na história das gerações, se tornaram fontes de forças para os que continuam sendo esmagados pelos prepotentes que triunfam na história. Santos canonizados pelo povo ( ou “encantados”, se diria no Tambor de Minas da Amazônia), são aceitos em silêncio pela Igreja oficial.

Sepé Tiaraju, o “São” Sepé, tem algo parecido, mas tem algo mais que incomoda. Como um São Luiz IX e uma Santa Joana D’Arc para a identidade da França profunda e moderna, que foram políticos de corpo e alma, sem hesitar em pegar em armas e incitar à cruzada e à guerra. Tornaram-se divisores de identidade, incômodos para uns e heróis para outros. Esses santos franceses, na verdade, foram fiéis cumpridores de uma cristandade em que mandar executar e ser santo era possível. Mas Sepé, para defender seu povo e o direito à vida de suas crianças, precisou transgredir os cânones de sua cristandade.

Em certo sentido, Sepé está para a história do RS como a figura histórica de Jesus para a literatura do Novo Testamento e para a história do cristianismo: um núcleo histórico judaico extremamente transgressivo e muita interpretação, algo como a pequena maravilha da fonte inicial e, depois, rios abundantes e fecundos. Mas sempre é possível voltar à fonte e beber dela água nova, inspirar-se nela quando as águas dos rios se contaminam e não fecundam mais. Ao longo da história, diferentes grupos foram beber nessa fonte, como fizeram os cristãos e os muçulmanos ao irem beber nas fontes da figura de Abraão, pai de Israel e de Ismael.

O próprio Negrinho do Pastoreio, esse personagem agregador de sentidos: há nele o custo das vidas inocentes de muitos negrinhos de carne e osso pelo Rio Grande saladeiro das charqueadas, desde aqueles que, conforme Saint-Hilaire, ficavam tristes em pé, escorados à parede, sem brincar e maltratados pelo filho da casa, como moleques de recados. Exatamente quando seu monumento dolorosamente traçado por Vasco Prado é colocado pelos CTGs em nossas praças, ele é como o ovo do patinho feio que poderá revelar um cisne em meio aos outros patos de nossa identidade gaúcha plural. Claro, se olharmos para trás e para frente: montado no cavalo escatológico do Negrinho do Pastoreio ou no cavalo encilhado de Sepé Tiaraju estão os descendentes todos de africanos triturados pelas charqueadas e de nativos derrubados pelas duas coroas ibéricas e pelas imigrações sucessivas. Na vida real continuam gaúchos peões e usuários de coletivos, de periferia e beira de estrada, que se reúnem em “gauchada” ou “indiada”, em torno de algum “índio velho” ou ainda melhor “qüera velho”: são palavras e indícios de uma identidade mais antiga, mais ancestral e mais enraizada do que a identidade gaúcha forjada mais ou menos oficialmente no entrevero dos confrontos de interesses resolvidos na degola e na necessidade de inventar para domar pela estética e pelo ritual dos CTGs a violência e as suas assombrações. Somente a partir deles, da sua poderosa mensagem, a identidade gaúcha poderá ter um futuro reconciliado e pacificado, dedicado ao real progresso com dignidade para todos.

 

Aliança dos sacrificados sob o progresso do RS

O Negrinho do Pastoreio, narrativa recolhida e consagrada por Simões Lopes, é a história cifrada dos que não tem os meios oficiais de documentar a sua história, narrativa situada no RS anterior às charqueadas, às estâncias e às cercas, no tempo do gado solto, chimarrão, jesuítico. Faz, portanto, como o juiz da carreira em cancha reta da narrativa – um índio velho do tempo missioneiro – um enlace com a história das Missões pelo caminho da narrativa popular. Na real: o gado missioneiro, abundante e disperso pelo trágico fim das cidades guaranis, tornou-se, com o agro-negócio, o fio dourado da economia gaúcha passando pelas charqueadas com trabalho escravo dos negros e pela indústria coureiro-calçadista até nossos dias.

Com a entrada de novas migrações européias o RS se divide também economicamente em duas metades. As migrações, desde os açorianos, foram introduzidas dentro de projetos de ocupação e desenvolvimento do espaço sem nenhuma consideração ou até contra a população nativa derrotada, espantada e dispersa, tornada “índio vago” ou então “índio do mato”, “bugre” que se evita como a árvore braba, aquela que agride pela sua inoculação de substância alérgica. E ninguém quer se reconhecer filho de bugre, apesar de sua bela pele, de seus olhos e de seu cabelo. Na linguagem sussurrada do povo, sobretudo a índia, a “china”, a avó bugra, é aquela que, normalmente ainda menina, passou pela violação, uma ferida e uma profanação de uma existência sagrada demais para suportar a dor da volta à consciência. O silêncio é o bálsamo da distância à custa de um vazio de memória e identidade. Nesse sentido, as populações mestiças do RS, provindas dos nativos das diferentes etnias que aqui viviam e provindas dos africanos trazidos como escravos têm as mesmas feridas, os mesmos silêncios, a dor da violação ainda latejando, a crise familiar e institucional ainda mal resolvida, a auto-estima ainda a ser recuperada. O “orgulho gaúcho” ainda não é do povo peão, continua a ser privilégio da aristocracia montada.

 

Necessidade de Memória

Antes do dualismo trágico de fronteira a marcar a identidade gaúcha está Sepé, um índio de avós e pais cristãos, nascido e criado em cidade missioneira, no espaço de um encontro civilizatório que, por muitos testemunhos deixados, e apesar das “lendas negras” que logicamente se criaram ao seu redor até hoje, foi um encontro bastante criativo dentro do duro contexto e das suas reais possibilidades.

Para os jesuítas significava a esperança de uma cristandade nova e cheia de promessas, melhor do que a velha cristandade européia ou dos colonizadores proibidos de andarem e contaminarem as Missões, e da qual Padre Antônio Sepp, que saiu de São Miguel com uma leva de guaranis para fundar São João Batista, se orgulha em seus escritos diante dos seus superiores na Europa.

Para os guaranis missioneiros, o melhor testemunho é o que eles mesmos escreveram: Nas cartas dos “cabildos” que governavam as cidades e dos caciques guaranis, que subsistiam com autoridade moral nas Missões, eles escreveram ao governador de Buenos Aires em resposta ao mandato do rei de Espanha de se retirarem todos os sete povos para a banda ocidental do Uruguai, deixando claro que não foram conquistados e submetidos à força, não eram escravos. Seu argumento maior consiste nisso: eles mesmos chamaram os padres e aceitaram livremente a vassalagem, porém dentro dos termos de civilidade, como súditos e não escravos, pois não poderiam aceitar, com o Tratado de Madri, sua própria destruição e escravidão. Não queriam guerra nenhuma, mas seriam obrigados a resistir. Estas cartas[3] como outros documentos indiretos[4] revelam uma grandeza de alma, uma dignidade e uma nobreza incomparavelmente acima dos dois lados que os espremiam, espanhóis e portugueses. Mesmo em termos de linguagem e argumentos cristãos, além de humanitários e políticos. Pode-se afirmar sem exagero que eles significaram, naquele momento, o que havia de civilização, enquanto as forças ibéricas de ambos os reinos, de Portugal e de Castela, significaram a barbárie que se abateu sobre eles. Torna-se irrelevante, diante disso, perguntar se eles eram espanhóis por serem vassalos do rei de Castela. Algo mais ancestral, anterior e profundo, emerge nessa condição: a dignidade de suas vidas, simplesmente, esta universalidade perene do humano.

Os índios missioneiros estavam entre o rochedo e o mar. A lógica dos impérios ibéricos, lógica expansionista e mercantilista, não poderia suportar outra forma de existência com sucesso. Como interpretou Rodolfo Kusch, filósofo argentino, trata-se aqui, mais a fundo, do trágico conflito entre a hegemonia do ser sobre o estar: o ser se realiza no seu desdobramento através do tempo e do espaço, identidade conquistando as diferenças para reunir tudo em si e aumentar o seu poder de ser, e assim sucessivamente. Os gregos, com a narrativa da Odisséia, a viagem de Ulisses, são o exemplo clássico desta civilização que, para se realizar, precisa se expandir, conquistar, colonizar, produzir, consumir. Sem isso não consegue ser feliz. Por isso “a verdade do ser é a guerra” (Heráclito), inclusive a atual guerra ecológica com traços apocalípticos.

Ora, os nativos viviam – e continuam a resistir popularmente e até tranqüilamente – na lógica do “estar”, habitando ecologicamente uma terra em que, mais do que serem eles os proprietários de terras, era ela, a “mãe terra”, a proprietária deles. Por isso, nos arrazoados de Santa Tecla, diante dos demarcadores, como nas cartas dirigidas ao governador de Buenos Aires, está o discurso guarani sobre a terra que só a Deus, o Criador, pertence, dada aos nativos para que nela habitassem. A memória se resumiu, como sabemos, no incômodo grito que repercute na memória subversiva até nossos dias: “Parem: Esta terra tem dono – nós a recebemos de Deus e de São Miguel”.

Na lógica indígena – é importante sublinhar – não são eles os donos da terra, mas Aquele que as deu para habitarem, para criarem seus filhos, enterrarem seus mortos, plantarem seus ervais e criarem seus animais, para cantarem seus cantos com o dom mais precioso que os torna humanos, as palavras, a conversa. Podem ser felizes simplesmente habitando nos ritmos da vida, em boas conversas, sem muitas coisas e sem sofisticação. Precisam da terra não para explorar, mas para habitar com simplicidade, e por isso, paradoxalmente, precisam mais terra do que os que a transformam inteira em matéria produtiva e negócio. Na verdade, são os guardiões naturais da ecologia, em que o ecossistema tem a sacralidade de uma mãe. Pode-se constatar esta mentalidade e esta sensibilidade nas comunidades testemunhas e nos descendentes mestiços ainda não totalmente contaminados pelo ser agressivo do Ocidente e pelo desejo mimético que está na sua base, que move a sociedade de consumo cada vez mais voraz para tentar ser feliz. Pode soar a romantismo infantil querer simplesmente sugar do seio da mãe terra. Os nativos e os sem terra querem também plantar, fazer trocas de bens da terra, mas mantendo-se na medida humana de suas famílias e comunidades. É nesse equilíbrio entre a terra e a comunidade humana que está a força de sua memória e de seu testemunho.

 

A herança guarani

Perdida dramaticamente, a ferro e fogo, a civilização nascida do encontro da espiritualidade barroca dos jesuítas com a mística e a sensibilidade guarani, e com a dispersão em diversas direções e destinos, os guaranis aprenderam a sobreviver através da adaptação silenciosa, enquanto os kaingangues preferiram recuar soberanamente para as matas, e os outros “infiéis” às coroas e à religião oficial (charruas, minuanos, guenoas, mojanes, tapes, patos, etc.) foram sendo dizimados de diversas maneiras, pelo extermínio, pela assimilação, pela morte simbólica de sua língua e cultura, tão cruel como a morte física. Pode-se perguntar se os atuais guaranis têm ainda algo em comum com os seus antepassados missioneiros. Nem todos os guaranis da época foram missioneiros. Na hora da batalha, nem todas as cidades missioneiras se defenderam, enquanto índios “infiéis” teriam se reunido aos missioneiros para combater juntos na defesa do seu espaço.

Hoje, além dos povos testemunhas, que, mesmo à beira de estrada, buscam viver em comunidades próprias, conservando a língua e a mística em torno de seus “karaís”, seus rezadores segundo sua religiosidade ecológica, há uma multidão de autênticos descendentes trágicos de Sepé Tiaraju nos rostos mestiços, de olhos amendoados, cabeças cobertas por cabelos lisos e pretos, com o enigmático sorriso de um olhar meio envergonhado diante das estirpes de doutores, de poucas palavras fora de seu círculo, verdadeiras multidões periféricas das cidades gaúchas que são a esfinge – uma esfinge de duas faces, a outra face tem cor negra, afrodescendente – a desafiar a identidade gaúcha e seus problemas de origem e de violência sistêmica. Porém, mais do que descendência biológica, trata-se de uma descendência “abraâmica”: os que vivem na trilha dos mesmos contextos, das mesmas lutas pela dignidade de sua gente. Todo gaúcho que pretenda ter orgulho de sê-lo precisa se medir com Sepé Tiaraju, figura “canonizada” – régua e medidor – ou figura “encantada” por sua elevação ao céu, que dá a inspiração e a medida do modo mais verdadeiro de viver e de morrer nesta terra gaúcha com dignidade, até na única luta em que vale a pena morrer. 

Evidentemente, a memória de Sepé, nesses 250 anos de sua morte e a de seus em torno de 1.500 companheiros sob os exércitos ibéricos em Caiboaté, não poderá ser apenas celebração que se torne álibi para descarrego de consciência, catarse para continuar no esquema do sacrifício dos mais frágeis sem problemas de consciência. A primeira justiça é o reconhecimento e a efetivação da necessidade de terra e de um mínimo de meios de vida para os povos indígenas, para que possam viver e passar em herança seu modo de vida comunitária. A sobrevivência deles, digna e feliz, é absolutamente necessária para o futuro da identidade gaúcha plural, enriquecida e pacificada. Em continuidade, Sepé Tiaraju se torna padroeiro da justiça fundiária no RS e das populações que precisam de terra para continuar vivendo e criando seus filhos por toda a pátria grande do Brasil e da América Latina. Aqui o progresso levou a novos enfrentamentos entre o latifúndio e os que vão ficando expostos à margem da terra e da cidade. É, portanto, um ascendente e um inspirador das lutas do MST. Sepé não é padroeiro automático de todos os que vivem nessa terra, não é padroeiro do latifúndio – seria uma blasfêmia -, mas somente dos que olham para a terra com o seu espírito e com o seu olhar.

Mas há todos os outros descendentes de indígenas, de avós bugres, que foram identificando e encantando Sepé Tiaraju para si, para sua dignidade mínima. Para a multidão de descendentes de ameríndios gaúchos, é urgente também devolver a dignidade da auto-estima, da visão positiva que fortaleça a generosidade e dê disposição de perdão e de reconciliação para com as demais descendências vindas e crescidas no espaço gaúcho. Inclusive trazendo seus ancestrais, seus mortos, na comunhão mística de sua religiosidade, para que desapareça de nossas calçadas as suas assombrações e a sua potencial violência obrigando a nos aprisionarmos em nossas casas com nossos juízos violentos. E para que fiquem seus mortos sobre nossas noites como a luz brilhante e pura de Sepé Tiaraju, o “facho de luz”, do qual possamos todos nos orgulhar e possamos todos venerar. Ele pode se tornar como um “pai Abraão” para todas as raças que habitam nesse espaço gaúcho, como o Negrinho do Pastoreio o nosso “Servo sofredor de Javé” gaúcho que, exaltado ao lado da madrinha, tem a dignidade de ser a vítima redentora do seu algoz ajoelhado aos seus pés. Até lá, continuarão os sacrifícios, as justificativas, as degolas, a insensibilidade, a “grosseria gaúcha”, sobretudo a grosseria pedante da aristocracia proprietária diante dos que já nascem “sem” chances, e o medo até das sombras que nos assaltam, e nenhuma descendência ou ascendência terá habitação pacificada numa justa pátria gaúcha para todos.

É por isso que, assim como o Movimento Negro lançou o desafio à auto-estima dos afro-descendentes com o slogan “Negro é bonito!”, com base na documentação e nos gestos herdados pelos descendentes índios, filhos de índios, no ano de Sepé Tiaraju pode-se proclamar com justiça: “Índio é nobre!”

 

Prof. Fr. Luiz Carlos Susin

 

 

[1] Cf. OLIVEN Ruben George, Rio Grande do Sul, um estado de fronteira. Boletim Celpcyro. Porto Alegre, v.3, p3-4, 2002.

[2] Cf FREITAS Décio, O homem que inventou a ditadura no Brasil. Porto Alegre: Sulina,

[3] RABUSKE Arthur, Cartas de Índios Cristãos do Paraguai, Máxime dos Sete Povos, Datadas de 1753. In : Estudos Leopoldenses, Vol. 14, n. 47 (1978)p65-102. O pesquisador utiliza e melhora traduções antigas, com uma introdução situando e avaliando os documentos.

[4] Cf, por exemplo, ESCANDON Juan, História da transmigração dos sete povos orientais. Pesquisas, História n° 23. São Leopoldo: Instituto Achietano de Pesquisas, 1983. O autor, escrevendo logo após a tragédia missioneira – em torno de 1760, portanto quatro anos depois – não está interessado diretamente nos índios, mas na defesa da reputação dos jesuítas diante da iminente perseguição. Exatamente por isso, suas notas sobre os índios antes e durante a guerra de 1756 revelam de forma desinteressada, até mesmo quando menospreza, a verdade da nobreza e da fé simples e firme dos índios missioneiros.