Sobre tucanos e gorilas: fascismo, autoritarismo, neoliberalismo e a frente de esquerda
Autor: Jorge Branco
Em 1962, Friedrich Hayeck remeteu uma carta dirigida ao ditador português, Antonio Salazar, encaminhando seu livro “The Constituition of Liberty”. Nela Hayeck afirmava que o livro ajudaria Salazar “na sua tarefa de desenhar uma constituição que previna os abusos da democracia”. Mais de uma década depois, Hayeck considerava que a ditadura salazarista havia garantido mais liberdade do que muitas democracias. Em entrevista ao “The Times”, de Londres, UK, em 1978, afirmou que “há muito governos autoritários em que a liberdade individual está mais segura do que em muitas democracias”. Muito provavelmente se referia ao colonialismo na África e às ditaduras sul-americanas, entre elas a do Brasil e a do Chile. Se ainda haja alguém que tenha dúvidas sobre o cerne do pensamento de Hayeck, ele mesmo as dissolve em entrevista ao jornal “El Mercúrio”, de Santiago do Chile, em 1981, onde ele diz “prefiro um ditador liberal a um governo democrático a que falte liberalismo”.
Não vejo motivos para manter-se qualquer ilusão de que o pensamento liberal mantenha vínculos com as ideias da liberdade e da democracia como regime. Para o neoliberalismo, a ideia de liberdade está restrita à dimensão capitalista e não as da igualdade. De forma contundente e progressiva, o neoliberalismo procedeu a uma transformação nos axiomas do pensamento liberal, transformou a liberdade do indivíduo em liberdade da empresa.
A desdemocratização e o golpe institucional, em curso no Brasil desde o golpe do impeachment na Presidenta Dilma, estão associados à política e às ideias neoliberais. Tal processo de desdemocratização não está, em realidade, vinculado ao pensamento fascista e sua liderança, como seria cômodo à muitos pensar. O crescimento do fascismo como corrente política remonta a transição do século XIX para o XX, mas na atualidade brasileira está muito mais para comportamento político, uma espécie de ‘efeito colateral”, como os militares estadunidenses costumam chamar a morte de inocentes após mais um de seus disparos de joystick, do que propriamente uma corrente de pensamento.
Os sujeitos políticos que dirigem o processo deste golpe no Brasil estão sob a hegemonia do pensamento neoliberal. O encurtamento do espaço democrático no país se relaciona diretamente com o rearranjo internacional procedido pelo grande capital rentista. Isto levou a necessidade de que se operasse, localmente, um grande movimento político que fosse capaz, em primeiro lugar, de retirar do governo um campo político popular com forte apoio eleitoral e, em segundo lugar, garantir que esse campo fosse incapaz de retomar o controle desse próprio governo. É, pois, neste contexto que precisa ser compreendido a prisão inconstitucional do Lula e as reformas trabalhista e previdenciária, a mudança do regime de exploração do petróleo brasileiro, a retomada das privatizações e a limitação dos gastos sociais em curso no país.
A hegemonia política neoliberal produziu um movimento ‘sísmico’ na política brasileira, com um grande deslocamento à direita das correntes políticas. A esquerda, de caráter mais popular, ocupando um espaço ao centro através das políticas de conciliação do Governo Lula, e o centro derivando radicalmente para a direita, através das operações antidesenvolvimentistas e golpistas do PSDB-PMDB. Cabe assim dizer, que o golpe institucional de 2016 esvaziou o centro como conteúdo político.
Neste sentido que a narrativa “antifascista” que começa a ser construída na defesa de uma unidade de todos contra a extrema-direita não tem sustentação e seria um equívoco muito mais desastroso que todos os equívocos juntos que, se possa considerar, a estratégia de conciliação do Lulismo tenha cometido.
O PSDB e o MDB, hoje, são a expressão do autoritarismo mitigado e do privilégio de classe que hegemoniza a política e os valores sociais no Brasil de hoje. As políticas desenvolvidas no Governo Fernando Henrique e no Governo Temer produziram resultados quase idênticos: subordinação internacional, desnacionalização, desdemocratização e concentração de riqueza. Ambos os partidos foram, em aliança com o oligopólio das empresas de comunicação e a alta burocracia estatal, os protagonistas políticos que produziram as condições subjetivas e objetivas para o golpe anticonstitucional em curso.
O fenômeno do fascismo emerge como resultado dessa política estratégica. O comportamento fascista e seus pequenos grupos e lideranças são ferramentas funcionais deste campo tido como centro mas que deixou de sê-lo efetivamente. Os extremismos e sentidos fora da ordem desse comportamento fascista contribuem para a legitimação desta hegemonia neoliberal antidemocrática e anti-igualitária. As candidaturas destes partidos reacionários não tem condições de compor, portanto, uma frente ou uma estratégia antifascista. Ao contrário, são a fonte da vitalização do comportamento fascista ao convalidar e produzir o processo de desdemocratização no Brasil e a demonização de valores igualitários, como as políticas sociais distributivistas. Fascismo e neoliberalismo se alimentam mutuamente, sob hegemonia do segundo
O combate ao fascismo e seus valores anti-humanistas precisam se realizar, portanto, como combate ao neoliberalismo e seus valores anti-igualitários. Nesse sentido que se impõe construir uma frente com capacidade programática de resgate de valores opostos ao neoliberalismo e ao fascismo, simultaneamente. Tal iniciativa precisa assentar-se em duas dimensões estratégicas, tanto no campo da política como no campo dos valores ético-culturais. Uma negativa, contrapor-se e confrontar o programa da direita neoliberal, e uma positiva, construir o pacto da frente de esquerda, de conteúdo democrático, humanista e igualitário.
Se por ventura se construir uma situação onde se tenha que optar por uma alternativa neoliberal para derrotar uma alternativa de caráter fascista é porque o neoliberalismo já terá vencido. Os argumentos de aglutinação em torno da candidatura de Alckmin, do PSDB, para derrotar o mal pior de Bolsonaro, são falaciosos e não se sustentam em fatos materiais. O programa e os valores que sustentam a candidatura e as alianças em torno de Alckmin são as que produziram, colateralmente, a candidatura Bolsonaro. Há uma unidade, de fato, entre esses campos, aglutinados em torno do conceito de reacionarismo.
O conceito de frente de partidos e organizações de esquerda, alicerçada em um programa de transição para uma economia não rentista e de fortes componentes reformistas em relação ao aparelho de Estado, ao sistema político-eleitoral, ao regime da democracia representativa liberal e a um forte processo de transferência de renda dos ricos para os pobres, pode se tornar a alternativa eficaz ao combate ao reacionarismo pois supera o maniqueísmo da separação entre essência e aparência, erro tão caro aos democratas, progressistas, sociais-democratas e socialistas em todo o mundo. O combate ao fascismo não deve se dar separadamente ao que lhe dá causa, o neoliberalismo.
A frente de esquerda tem que pretender ter o caráter de contra hegemonia no país. Para isso precisa se construir sobre um programa reformista forte e sobre uma autocrítica da estratégia de conciliação que acabou por se basear em um programa de distribuição conservadora. A isso chamo de vontade contra hegemônica.
Essa frente, se envolver as lideranças de Boulos, Manoela e, principalmente, Lula, dará um sinal forte dessa ‘vontade’ contra hegemônica, onde a pequena política pode ser substituída pela grande política, nos termos de Gramsci. Esta “vontade”, organizada em uma frente poderá atrair frações mais dispersas do centro-esquerda como os que se organizam em torno do PSB e da candidatura de Ciro Gomes. Um programa assertivo, quanto aos seus aspectos reformistas, pode polarizar a opinião pública e atrair os setores em dúvida, neste aspecto antineoliberal.
O tempo político dessa frente é amplo mas, evidentemente, tem uma necessidade imediata, precisa se realizar neste processo eleitoral de 2018. Contudo, tal estratégia e programa não poderão se extinguir ao seu final, em uma batalha de tudo ou nada, pois o combate à hegemonia neoliberal não está condicionada ao processo eleitoral. Aliás vimos que sequer pode estar condicionada ao regime democrático encurtado realmente existente no Brasil.
A frente deve ser construída com o olhos voltados a um ciclo longo da política mundial, a interdição ao fascismo e, sua causa, o neoliberalismo e a perspectiva de uma programa de transição para uma economia igualitária. A frente democrática de esquerda deve ser a “parteira” desse novo ciclo.
Jorge Branco
Sociólogo, Mestre e doutorando em Ciência Política