A grande fábrica de produção de ignorância

30 de julho de 2018
Autor: Cristóvão Feil

Todos sabemos que a ideologia é uma forma de mascarar a crua realidade do modo de dominação capitalista. A ideologia é um véu que encobre a verdade. Como dizia Eça de Queirós, “sobre a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia”. A ideologia é uma vasta obra de muitos capítulos, e um deles é aquilo que se pode chamar de agnotologia, ou seja, o estudo das políticas de produção da ignorância. A ignorância não é somente falta de conhecimento. É muito mais que isso. A ignorância é também a crença piedosa em falsas verdades, em mitos e superstições variadas. Na atualidade, em que pese o avanço exponencial do conhecimento científico-tecnológico, o modo de produção estimula a usinagem fordista-taylorista (ou toyotista, como queiram) da produção de ignorância seriada e horizontal.

A construção e a desconstrução da ignorância, nos termos do historiador Robert Proctor, têm uma atividade tão dinâmica quanto a velocidade das novas tecnologias que aportam ao mercado todos os dias. O pobre de direita é um produto pronto e acabado, testado e validado, pela grande fábrica abstrata de ignorância do mundo contemporâneo. A desmoralização do fazer político é outro flamante produto desta usina de burros e servis, que ignoram a si e o entorno no qual vivem. Como a vida comunitária e a solidariedade foram dissolvidas no balcão gelado da mercadoria e do consumo, colonizando consciências e anulando identidades, os objetos compráveis, gadgets, e bagulhos vários, acabam representando identidades provisórias e pequenos espelhos quebrados de narcisismo e esmagamento do Eu.

Agora, a história virou uma grande ideologia, onde predomina o falso e o enganoso.

Em setembro de 2008 explode a bolha financeira dos EUA, conhecida como “crise dos subprimes”, com imediata reestatização das agências de crédito imobiliário Fannie Mae e Freddie Mac, privatizadas em 1968. O presidente Obama injeta cerca de três trilhões de dólares nos cofres de bancos, empresas privadas e montadoras de automóvel (Ford, GM, etc.) com a intenção de salvá-las da bancarrota total. O motivo desta crise estrutural do sistema foi o excessivo endividamento do setor privado, sobretudo no mercado imobiliário dos EUA. Mas o véu diáfano da fantasia, operado pela mídia, especialistas de araque (que foram incapazes de prever o colapso), agências de risco, departamento de Universidades, charter schools, think tanks (laboratórios de ideias montados pelos muito ricos para analisarem modos de assalto ao Orçamento público), lançaram uma versão distinta da verdade factual: o vilão da crise de 2008 foi a dívida pública, o governo gasta muito e de forma perdulária (excesso de programas sociais, segundo o ideologizado diagnóstico da direita). Todos sabemos que o problema não reside na quantidade de gasto público, mas na qualidade do gasto. Os investimentos importantes, cruciais, em educação, capital humano e P&D (pesquisa e desenvolvimento ou I&D) são mínimos, por isso a relação dívida/PIB acaba crescendo e tomando um vulto prejudicial a todos. As receitas de austeridade é que agravam o problema de forma quase sem volta. Países como o Canadá, Nova Zelândia e Austrália têm enormes dívidas públicas, mas – contrariamente ao que propagam os neoliberais – continuam suas virtuosas escaladas no crescimento produtivo, porque investem em capital de risco, capital humano, pesquisa e banco de patentes tecnológicas.

A propósito de inovação e do empreendedorismo, neste campo também existem produções seriadas de ideologia e mito. A empresa Google, por exemplo, obteve financiamento público do Tesouro dos EUA para bancar os bilionários estudos do algoritmo com o qual domina hoje o setor de informação e comunicação em quase todo o mundo. A Fundação Nacional de Ciência (NSF) dos EUA colocou muito capital de risco de origem pública no Google. E antes da fundação estatal NSF fazer esse investimento, outro órgão estatal também fez aposta de risco no Google, como a SBIR (Pesquisa para Inovação em Pequenas Empresas), cujo controle é do Departamento de Defesa dos EUA, que premia empresas com menos de 25 pessoas, empresas com menos de dez anos, empresas minoritárias e de propriedade de mulheres.

A empresa Apple é um resultado de sucesso comercial e tecnológico graças à acumulação primitiva de conhecimento, pesquisa básica/aplicada e investimento de risco do Tesouro público dos EUA. Os fieis endinheirados do evangelho neoliberal não admitem, mas a Apple está erigida sobre bases estatais sólidas e garantidas por encomendas públicas, encomendas militares, fundos públicos de fomento industrial, e outros mecanismos ocultos do Estado, tal como um autêntico “comitê executivo da burguesia” (Marx no “Manifesto de 1848”).

As principais áreas do investimento direto e indireto do Estado podem ser assim resumidas: 1) investimento direto de capital em startup; 2) acesso livre a tecnologias resultantes de programas de pesquisa governamental, de iniciativa militar ou contratos públicos; 3) criação de políticas fiscais, comerciais ou de tecnologia que apoiam empresas privadas como Google, Apple, AT&T, Bell, HP, Fairchild, IBM e centenas de outros prósperos empreendimentos privados dos EUA.

Para ilustrar acerca da mão invisível do Estado (e não do mercado) nos empreendimentos biliardários de empresas privadas dos Estados Unidos podemos citar o caso do GPS, o dispositivo de posicionamento e monitoramento geográfico que hoje é razão do sucesso do Uber (entre outras milhares de empresas que o usam embarcados em seus aparatos tecnológicos), em serviços de e-hailing e o eufemismo da “carona remunerada”. De uso estritamente militar, ainda na década de 1970, o GPS foi aprimorado e hoje representa o forte impulso (oculto) do Estado na iniciativa privada. A Força Aérea dos EUA continua na vanguarda do desenvolvimento e manutenção do sistema GPS, a um custo anual que orça em 705 milhões de dólares/ano para o contribuinte nacional.

Os exemplos que temos desta política deliberada e consciente (uma verdadeira Inteligência) de construção da ignorância, capítulo da vasta enciclopédia da Ideologia, são inumeráveis, quase infinitos.

Semana próxima podemos voltar ao tema, e examinar o mito romântico das empresas estadunidenses que garantem que foram criadas em garagens, como a própria Apple, o Google, o YouTube, a Dell, a HP e muitas outras.

Em 30 de julho, 2018

 

Cristóvão Feil

sociólogo