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Jorge Branco | Brasil de Fato RS

Publicação original disponível AQUI.

 

“Vivemos no Brasil uma catástrofe humanitária causada por um genocídio planejado. Basta!” – Foto: Fabiano Leitão

 

Temos certeza, as evidências, fatos desnudados demonstram, dia após dia. A cada depoimento, investigação, declarações de arrependidos, ou apenas alguma revelação de um boquirroto qualquer, nos são revelados fatos que convalidam essa certeza: o número espantoso de mortes pela pandemia da covid-19 no Brasil era evitável.

Esta catástrofe, em pleno século XXI, é o resultado macabramente previsível de um meticuloso processo intencional baseado na indiferença como política e no individualismo como ética. Esse arranjo de indiferença, individualismo e morbidez fez a base da retórica política do governo Bolsonaro e se transformou em método de governo.

A CPI da COVID-19, no Senado federal, através das contradições da maioria dos depoentes, permitiu perceber a cadeia sequencial de decisões que materializaram a espantosa marca de meio milhão de mortos, já superada quando escrevo este artigo.

As decisões de Bolsonaro, amparadas em todo seu governo, em sua base parlamentar e seus mecanismos de comunicação nas redes sociais e na mídia tradicional, apontam para uma morosidade intencional cujo centro era, num primeiro momento, negar a pandemia, na sequência negar sua letalidade e finalmente obstruir as medidas de combate, como o uso de máscaras, o distanciamento social e a vacinação ampla.

As opiniões e decisões expostas na CPI demonstram que as declarações aparentemente fragmentadas de um bom número de bolsonaristas eram, ao contrário, articuladas e coordenadas em torno da ideia de constituir uma realidade paralela, criando confusão e dúvidas sobre o impacto da pandemia, já então suficientemente exposto pelas autoridades científicas mundiais e nacionais. Grande parte do imobilismo das autoridades públicas nos primeiros meses do enfrentamento à covid-19 se deveu à dúvida, contrainformação e desinformação espalhadas pelos agentes do bolsonarismo, liderados pelo próprio Jair Bolsonaro e organizados pelo aparelho de produção de “fake news” instalado no governo.

Não há como não lembrar das declarações de caráter militante do deputado bolsonarista Osmar Terra, agravadas pelo fato de se apresentar como um especialista em saúde. Terra sempre minimizou e desprezou os efeitos da pandemia da covid-19 com a infundada crença de que seria possível superá-la rapidamente através da chamada imunidade “de rebanho”. 

À operação de diversionismo se sucederam outras operações, mas, na medida em que avançava a pandemia e com ela o estúpido número de mortes, cresciam a resistência e a oposição – na mesma proporção em que as evidências do genocídio vinham à tona.

Após a minimização da pandemia, se seguiu uma operação de comunicação disposta a contrapor o emprego e o trabalho à proteção da vida das pessoas. A guerra promovida por Bolsonaro contra as medidas protetivas de uso da máscara e isolamento social – atacando autoridades e gestores públicos de outras esferas que tomaram ou cogitaram tomar estas medidas recomendadas pelas organizações de saúde pública e pela ciência – ampliou a confusão na opinião pública, diminuindo a eficácia e o alcance de tais medidas que poderiam comprovadamente cercear e conter a expansão da pandemia.

A fantasiosa “escolha de Sofia”[1] imposta à população, uma escolha dramática entre alternativas igualmente dolorosas, que opôs frontalmente proteger-se da infecção ou garantir o emprego, aprofundou a crise ao dispersar esforços e confundir a opinião pública. Como o emprego está se esfumaçando no país desde o início do governo Bolsonaro em função de sua política macroeconômica, fica nítido que foi esta política – de sistemática negativa em adotar um programa consistente e estável de garantia de renda e crédito aos trabalhadores e aos negócios – que ampliou o desastre social e não as medidas de combate e contenção à pandemia. Mas o governo Bolsonaro foi eficiente em jogar o país, em especial a população trabalhadora, em um infindável e letal confronto entre os que queriam seguir com as atividades econômicas e os que queriam se proteger da enfermidade. Uma guerra sem trincheira, de todos contra todos, na qual as vítimas foram a razão e a população.

Mas isso ainda não era tudo o que Bolsonaro reservava ao país. As informações reveladas nos depoimentos das sessões da CPI nos deram a desagradável confirmação de nossas piores e mais sombrias percepções. O governo Bolsonaro objetivamente obstruiu a campanha de vacinação contra a covid-19, criando dificuldades para aprovação das vacinas, obstáculos para importação de insumos com as mais simplórias assombrações anticomunistas e, criminosamente, atrasando a chegada das vacinas ao país, como demonstram depoimentos, documentos e correspondências reveladas à Nação, ao menos em parte estarrecida. Não faltam indicativos de que interesses financeiros privados regeram a adoção desta política.

A operação de dissimulação levada a cabo, organizadamente, por Bolsonaro ampliou o número de mortes do Brasil. Somos mais de meio milhão de mortos pela covid-19 no país. Digo que fomos mortos em grande parcela evitáveis. Mortes que não são analisáveis de forma estanque ou restrita. Estas mortes ocorreram em escala de progressão geométrica, como uma onda sísmica que se espalhou em todos os sentidos e direções.

É preciso analisá-las e interpretá-las em seu impacto no tempo presente e em seu tempo futuro. Cada pessoa que se foi representa uma família amargurada por uma morte que poderia ter sido evitada, representa uma força dinâmica para recriar a economia brasileira perdida, uma massa de desalentados. Significam, enfim, incontáveis amores perdidos.

Esse conjunto de evidências nos impõe concluir: trata-se de uma catástrofe humanitária causada por um genocídio planejado. Basta!

 

[1] “A escolha de Sofia”, filme de 1982 dirigido por Alan J. Pakula, a partir do romance de William Styron.

 

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato ou da Rede Soberania.

Edição: Katia Marko