Artigo | A grande Rosa de Luxemburgo
Autor: Cristóvão Feil
Cristóvão Feil (*)
Dias atrás me deparei no Twitter com alguém que se identifica como a Pasionaria. De imediato, passei a brincar com a fantasia da pessoa. Ela se dizia feminista, mas ao mesmo tempo nega essa condição ao adorar o bezerro de ouro do stalinismo espanhol, Dolores Ibarruri, uma das coveiras da revolução na terra de Cervantes.
Manuel Vazquez Montalban, escritor de esquerda dos mais prolíficos, criador do imortal detetive Pepe Carvalho, escreveu uma pequena obra sobre a velha stalinista basca chamada “A Pasionaria e os sete anõezinhos”. Ele próprio relata que houve uma inflexão de ânimo no meio do trabalho de preparação e redação do livro sobre Dolores Ibarruri. Vazquez confessa que ficou chocado com trechos da história da basca. Para não magoar a filha de Dolores e demais pessoas que entrevistara, ele passou uma versão amenizada dos fatos. Nós sabemos o que Vazquez atenuou. Certamente a traição continuada à causa revolucionária, especialmente durante a luta dos republicanos contra o fascismo franquista, entre 1936 e 1939. A vida subserviente e calada diante dos horrores de Moscou, quando Stalin elimina fisicamente toda a velha guarda bolchevique em nome do triunfo ao culto à sua própria personalidade.
A Pasionaria como ícone revolucionário de esquerda (ou feminista) é uma fraude grosseira. A começar pelo codinome altissonante e pretensamente poético. Risível. Nada disso é genuíno, entretanto. Filha de um mineiro carlista – devoção católica ultramontana -, na juventude, ele fazia parte de um círculo de oração chamado La Pasión de Jesucristo. Tinha veleidades de jornalista, o que acabou se cumprindo dentro do PC espanhol, e assinava seus textos – candidamente – como La Pasionaria. Ao entrar para o PC, mantém a alcunha, mas cuida de ocultar a sua origem religiosa de extrema-direita.
A rigor, não quero tratar de uma coisa desagradável como a Pasionaria. Esse espaço aqui é curto e deve se ocupar de personagens mais relevantes e que não expressem a vilania humana mascarada pelo manto ideológico da farsa stalinista.
Acho curioso que alguém prefira chamar-se de Pasionaria em detrimento, por exemplo, de Rosa Luxemburgo, esta sim uma autêntica revolucionária e um exemplo de conduta à mulheres, homens, a feministas e a não feministas.
Hannah Arendt, outra mulher admirável (e que jamais foi marxista), prestou uma grande homenagem a Rosa. Trata-se de um pequeno texto publicado em meio a outros tantos ensaios, onde ela destaca a vida e o pensamento da revolucionária polonesa. Em pouco mais de vinte páginas, Hannah define uma grande personalidade do século 20, brutalmente assassinada em 1919, num episódio nebuloso e que contou com a anuência dos social-democratas alemães, então no poder. Rosa era um estorvo tanto para os social-democratas quanto para o PC alemão.
Depois de provocar a Pasionaria fake do Twitter, fui reler o texto de Hannah Arendt sobre Rosa Luxemburgo (foto). Recomendo. Ele faz parte da pequena obra “Homens em tempos sombrios” (Men in dark times). No posfácio da edição brasileira consta um artigo de Celso Lafer, o conhecido tucano, sobre a biografia de Hannah Arendt. Os tucanos, diga-se de passagem, tentaram, anos atrás, subsumir o pensamento rico, vigoroso e radicalmente democrático de Arendt, mas não obtiveram sucesso, haja vista a direção regressista e protofascista que adotaram nestas eleições de 2010.
Na famosa polêmica com Lênin, e que a ideologia stalinista sempre minimizou, porque aí residia uma das gêneses do problema, Rosa já vaticinava o fracasso dos bolcheviques. Na revolução russa de 1905, começaram a surgir divergências de fundo, pelo menos nos temas básicos: a questão nacional e o tema da organização como método.
Em 1916, Rosa oferecia um prognóstico severo à história do socialismo, no sombrio e lúcido panfleto A Crise da Democracia Socialista: “Enquanto existirem Estados capitalistas, enquanto, mais precisamente, a política imperialista universal determinar e moldar a vida interior e exterior dos Estados, o direito das Nações a disporem de si mesmas não passará de palavra vã, quer em tempo de guerra, quer em tempo de paz. Ainda mais: na atual conjuntura capitalista não há lugar para uma guerra nacional de defesa e qualquer política socialista que abstraia desta conjuntura histórica, que apenas se guie, no meio do turbilhão universal, pela ótica de um só país, estará desde o início destinado ao fracasso”.
Rosa não fazia concessões a Lênin, aos bolcheviques e muito menos ao revisionismo menchevique. Criticava com energia a inconsistência de duas palavras de ordem, simultâneamente contraditórias: o centralismo democrático do Partido e o direito à autodeterminação das nacionalidades satélites da Rússia. Lênin, em 1914, havia lançado um panfleto intitulado Do direito das Nações a disporem de si mesmas. Rosa sustentava que havia oportunismo político na questão nacional defendida por Lênin.
Afinal, essas nações tinham interesses dominantes das burguesias locais e interesses não-dominantes do proletariado. Ela como polonesa e ativista política na Alemanha queria um processo revolucionário articulado em toda a Europa e não somente na Rússia, que era uma forma de diminuir o conteúdo da revolução, isolar e dividir o proletariado nos guetos nacionais, onde as derrotas seriam facilmente impostas pelas burguesias de cada país. Stalin, depois da morte de Lênin, seguiu à risca a política do socialismo em um só país, e a história teve o desenrolar que se lamenta. Fracasso sobre fracasso.
Aí entram os tipos e personagens que servirão de instrumento ao horror stalinista, e um destes instrumentos bisonhos foi justamente a Pasionaria basca. A derrota dos republicanos na Revolução Espanhola foi obra muito mais da traição dos comunistas espanhóis (manipulados remotamente desde Moscou) do que propriamente da vitória armada do franquismo ultramontano associado ao nazifascismo do eixo Berlim-Roma.
Estes acontecimentos não ocorreram ontem. São fatos sociais para os quais já temos análise teórica e explicação histórica. A coruja de Minerva já sobrevoou estes escombros históricos, incansáveis vezes. Quem ainda se engana ou se ilude com esse saldo histórico catastrófico é porque está enfeitiçado pela ideologia remanescente. Por esse motivo, tanto mais se justifica a estranheza que sinto ao me deparar com alguém que acenda incenso para Pasionaria e ainda desconheça a grandeza simples e autêntica de Rosa Luxemburgo – esta sim, uma feminista exemplar.
(*) Sociólogo
Em 26 de abril, 2021.