Carlos Wagner: O que os jornalistas aprenderam com a derrota do Trump?

12 de novembro de 2020
Autor: Carlos Wagner

Carlos Wagner – Jornalista

Publicação via Histórias Mal Contadas. Original AQUI!

A derrota de Donald Trump (republicano) para Joe Biden (democrata) nas eleições dos Estados Unidos deixou no seu rastro uma riqueza enorme de fatos que precisamos esmiuçar e refletir para explicar melhor a história ao nosso leitor. Trump foi eleito em 2016 e concorria à reeleição. Durante o seu governo, ele não só transformou a vida dos americanos em uma baita confusão como também a dos seus aliados e até a dos seus inimigos. Trump foi derrotado. Mas os fatores que o elegeram em 2006 e que transformaram a disputa de 2020 em uma das mais acirradas da história americana continuam vivos. É sobre isso que quero conversar com os meus colegas, especialmente os jovens que fazem a cobertura do dia a dia nas redações para os noticiários dos jornais (papel e site), rádios, TVs e outras plataformas. Tudo que vou relatar são fatos.

Um dos esteios das eleições de Trump em 2016 foi cravado em 1980. Lembro-me porque estava na redação e fiz muitas matérias. Naquele ano se aprofundou um processo econômico que já vinha acontecendo ao redor do mundo: a globalização da economia, que significou a migração de centenas de indústrias para a Ásia, em busca de mão de obra barata. Lembro que, em uma noite de 1984, estava jantando, bebendo cerveja e conversando com um repórter americano em Frederico Westphalen, uma cidade agroindustrial no norte do Rio Grande do Sul. Ele me contou que o pai dele tinha sido trabalhador em uma indústria automobilística. Perdeu o emprego quando a fábrica se transferiu para a China. E o emprego seguinte que conseguiu pagava um salário 50% inferior ao que ganhava antes. Aqui, no território gaúcho, no Vale dos Sinos, na Região Metropolitana de Porto Alegre, centenas de fábricas de calçados e de fornecedoras de matéria-prima fecharam suas portas e se mudaram para a Ásia. Alguns milhares de trabalhadores perderam seus empregos. Eram escassas as matérias nos jornais na época. Até o início da década de 90 ainda se publicavam reportagens sobre os desempregados pela globalização. Depois esquecemos o assunto. E outros tipos de desempregados chamaram a nossa atenção, um em particular. O que perdeu seu emprego para as novas tecnologias. Aqui é o seguinte. Nós acabamos enchendo os jornais com conversa de consultores afirmando que o desaparecimento de um emprego geraria outros. Repetia-se exaustivamente uma frase, eu mesmo a escrevi muita vezes: “a profissão das futuras gerações de trabalhadores ainda nem foi inventada”.

O fato é o seguinte. O que aconteceu com os desempregados pela globalização e pelos avanços da tecnologia nunca foi uma pauta levada a sério pelas redações. Tampouco, no caso do Brasil, mereceram atenção os milhares de brasileiros que ascenderam à classe média e depois perderam tudo com a crise econômica de 2015. Nos Estados Unidos houve uma crise econômica em 2008 que desempregou milhares de pessoas. Quem são os americanos e os brasileiros que perderam os seus empregos, onde estão e o que estão fazendo para sobreviver? São perguntas que precisamos responder. Também nunca levamos a sério os saudosistas da Guerra Fria (uma disputa armamentista e ideológica entre os Estados Unidos e a extinta União Soviética, entre 1947 a 1991). Nesse grupo se incluem muitos militares reservistas e reformados das Forças Armadas do Brasil que participaram ou são simpáticos ao golpe militar de 1964 (que durou até 1985). Também não lançamos luzes sobre os movimentos extremistas, tipo neonazistas e a Ku Klux Klan, e exóticos, como terraplanistas e ocultistas. Aqui um comentário. Os nazistas usaram como ferramenta o ocultismo para justificar os horrores praticados com os judeus e outras minorias. Há documentários sobre o assunto. Steve Bannon, estrategista da campanha de Trump em 2016, viu nesse grupo de pessoas uma oportunidade de vender um “salvador da pátria”, como chamamos aqui no Brasil. Aliou-se a profissionais altamente qualificados na ciência da comunicação, montou uma máquina de distorcer a verdade e de vender sonhos para esse público. Trump se elegeu vendendo sonhos, como a volta das indústrias que migraram para a Ásia. O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro (sem partido), usou o mesmo caminho para se eleger vendendo a ideia de que livraria o país da corrupção, da esquerda e outros desatinos. Trump se comportou no seu governo como se fosse um cowboy bêbedo no fim de semana em um cidadezinha do velho oeste. E Bolsonaro como se fosse um miliciano nas favelas do Rio de Janeiro. Trump não é um cowboy bêbedo e muito menos Bolsonaro é um miliciano. Eles apenas estão desempenhado um papel, como se estivessem em um filme, para agradar o seu público. Eles seguem o roteiro traçado por Bannon. Por exemplo, o tratamento negligente que deram à pandemia criada pela Covid-19, uma doença para a qual ainda não há tratamento médico e as vacinas estão em fase de estudos. O vírus já matou mais de 150 mil brasileiros e 230 mil americanos. Os dois países são campeão e vice no número de mortes. Pergunta. Se Trump e Bolsonaro tivessem levado a sério a Covid-19, eles teria ganhado o espaço que tiveram na mídia ao assumir a postura de negacionistas?

Os estrategistas da campanha de Biden localizaram os pontos fortes e os fracos da máquina de fake news que sustenta Trump no poder. O que vou escrever não encontrei em nenhuma publicação, é baseando no que assisti, li, ouvi e aprendi com a minha experiência de 40 anos de repórter na cobertura de conflitos. O estilo cowboy bêbedo de fim de semana de Trump é um dos pontos fortes da sua popularidade. Não sei se foi pensado. No primeiro debate entre os dois (29/09), Trump se comportava no seu melhor estilo cowboy bêbedo, não deixando ninguém falar. Até que Biden se enfureceu e repetiu o que o rei da Espanha, Juan Carlos, fez com o então presidente da Venezuela, Hugo Chávez, em uma conferência. Chávez se metia na conversa de todo mundo até Juan Carlos gritar: “Porque no te calas?”. Biden gritou o seguinte: “Você pode calar a boca, cara?” E mais: na frente do adversário, chamou-o de “palhaço”. Aqui, no Rio Grande do Sul, chamamos isso “ganhar no grito”. A cara de Trump foi de surpresa. A imprensa, principalmente os jornais (papel e sites) e os comentaristas políticos das rádios e TVs, concentram suas análises nos conteúdos do debate. Eu tenho defendido em minhas palestras e em post (06/10, “O dia em que Biden foi o rei da Espanha. E Trump foi Hugo Chávez”) que o ponto alto do primeiro debate foi o momento em que Biden mandou o seu adversário calar a boca. Durante toda a campanha o candidato dos democratas soube “matar na raiz” as imagens geradas pelos comentários fake news do seu adversário.

Arrematando a nossa conversa. Biden é o xerife que expulsou da cidade o cowboy bêbedo que fazia arruaça, como nos velhos e bem-feitos filmes de bang-bang. Mas os criadores da máquina de fake news que sustentou Trump continuam na cidade. Bem como a enorme população que espera o aparecimento de um vendedor de sonhos que tragam de volta os bons tempos. A pandemia aumentou esse contingente, semeando milhares de desempregados ao redor do mundo, mesmo nas economias fortes, como é o caso dos Estados Unidos. Em muitos países, o ambiente deixado pela devastação causada na saúde pública e na economia pela Covid-19 na pós-pandemia vai se assemelhar muito à Alemanha dos anos 30, que serviu de berço para o nazismo. Daí a importância do repórter estar bem informado sobre o que escreve. A vacina contra o totalitarismo é um o bom jornalismo. É por aí, colegas.