Luzia está morta no Reino dos Sem Memórias
Autor: Leonardo da Rocha Botega
Luzia permaneceu na Gruta da Lapa Vermelha, no município de Pedro Leopoldo, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, por cerca de 12.500 a 13 mil anos. Esteve lá entre os tantos vestígios ocultos da história até ser encontrada e seu crânio desenterrado, em 1975, pela missão arqueológica franco-brasileira da arqueóloga francesa Annette Laming-Emperaire. Foi levada ao Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro, onde ficou mais uma vez esquecida entre as caixas e os refugos dos acervos da instituição. Anos mais tarde, o arqueólogo Walter Neves, da USP, a encontrou e passou a estudá-la.
As descobertas eram surpreendentes. Aquela “jovem” de 1,50 m, que perdeu a vida entre os seus 20-24 anos, de crânio estreito e longo, queixo proeminente, faces estreitas e curtas, era diferente de qualquer outro habitante conhecido no continente americano. Uma surpresa que se revelou ainda mais com a reconstituição de seu rosto feita pelo grupo de pesquisadores da Universidade de Manchester, na Inglaterra, que identificaram Luzia como uma mulher com feições nitidamente negroides. O nariz largo, os olhos arredondados, o queixo e os lábios salientes demonstram uma espécie de hominídeo diferentes das que originaram os atuais povos indígenas brasileiros. A mais antiga habitante da América era mais parecida com os habitantes de algumas regiões da África e da Oceania, o que despertou um revolucionar na até então pouco questionável Teoria do Estreito de Bering.
Saída do anonimato, Luzia estava lá no Museu Nacional, junto com a coleção Santarém, a civilização Marajó, as moedas de Dom Pedro, as coleções Nagô, a nação Haussa, o maior crustáceo do Pacífico, as múmias de Puma, as coleções Kadiweu, os cristais do Brasil central, os vidros de Pompéia, às ânforas da Magna Grécia, a Sala dos Embaixadores e a biblioteca de camponeses, índios e negros. Estava lá junto com 20 milhões de peças que representavam 200 anos de preservação e pesquisas, que faziam a alegria dos visitantes, sobretudo, os dinossauros tão amados pelas crianças.
Luzia queimou junto com a política de austeridade que vem queimando milhares de empregos e de vidas dignas no Brasil. Luzia queimou em tempos em que a história e a cultura são renegadas como custos em um país cujo repasse anual de seu Museu Nacional equivale a 10 auxílios moradias recebidos por muitos juízes com casa própria. Luzia queimou junto com 20 milhões de peças guardadas por apenas quatro vigilantes. Luzia queimou no final da semana onde o “mito de alguns” pronunciou na principal rede de televisão do país a frase “Deixa os historiadores para lá”.
Deixar os historiadores (e a história) pra lá é o que tem sido feito constantemente em um país onde a maioria dos adolescentes tem míseros 50 minutos de aula de história por semana e mesmo assim os seus professores e suas professoras são acusadas de “doutrinadores” por muitos que fazem parte dos 75% de brasileiros que sequer leram um livro no ano passado. Deixar os historiadores pra lá é esquecer a humanidade e deixar imperar a barbárie. Deixar os historiadores pra lá é negar a memória, o patrimônio histórico, o passado, o presente e o futuro de uma Nação constantemente boicotada por cortes de recursos públicos em beneficio da manutenção dos interesses privados da casta superior. Deixar os historiadores pra lá é se comover com a destruição do Museu Nacional e sequer se envergonhar de ter votado ou apoiado a PEC do Fim do Mundo.
Luzia está mais uma vez morta e um pouco de cada um de nós historiadores morreu junto as chamas que devoraram um Museu Nacional que ousava sobreviver em um país que mais parece um Reino Sem Memórias. Cada vez que falar sobre ela vou lembrar daquelas chamas e dos canalhas que direta ou indiretamente acenderam o fogo. Afinal, como disse Peter Burke, “A função do historiador é lembrar a sociedade daquilo que ela quer esquecer”.
Leonardo da Rocha Botega
Professor de História de EBTT da UFSM