“No Brasil, uma mulher negra não vale nada”
Autor: Michele Corrêa
É a carne negra
A carne mais barata do mercado
É a carne negra Que vai de graça pro presídio
E pára debaixo do plástico
E vai de graça pro sub-emprego
E pros hospitais psiquíatricosA carne mais barata do mercado
É a carne negra Que fez e faz e faz história
Segurando esse país no braço, meu irmão
O cabra aqui, não se sente revoltado
Porque o revólver já está engatilhado
E o vingador eleito(canção interpretada por Elza Soares)
A frase que nomeia este artigo é o título de uma matéria publicada em uma tribuna do jornal Libération, publicada nesta segunda-feira (7), onde a escritora ruandesa Scholastique Mukasonga escreve suas três visitas ao Brasil, ela conta o que testemunhou diante de um país em transição política ao voltar de uma nova viagem recente ao país.
A autora ruandesa esteve em Porto Alegre e São Paulo para promover seu livro “Baratas”, o terceiro que lança no Brasil. No Rio de Janeiro, ela participou do fórum “Women of the World”, uma iniciativa do Conselho Britânico em parceira com a ONG Redes da Maré. No texto, Scholastique fala sobre sua primeira visita ao país, e da experiência com os leitores emocionados com o seu trabalho. A autora reconhece não ter se dado conta, nessa primeira viagem, da violência do abismo que separa a riqueza ostentadora da pobreza extrema e do racismo exibido por pessoas que fazem sangrar um país tão cativante.
A viagem mais recente de Scolastique foi diferente. “Desde minha chegada, fiquei impressionada pela atmosfera de medo e violência que reinava”, diz. Tanto em Porto Alegre, quanto em São Paulo, os conselhos eram de não sair do hotel de noite, por conta das gangues que disputam ruas e bairros. Em São Paulo, as advertências eram ainda mais insistentes: “Tenha muito cuidado, pois além de mulher, você é negra. Aqui, uma mulher negra não vale nada. É preciso prestar atenção em dobro, no simples fato de atravessar uma rua, pois um carro pode avançar sobre você. Ele não vai parar, ainda mais por ser uma mulher negra”, testemunha.
No Rio, ela diz que é sempre surpreendente ver a pobreza sórdida das favelas ser o pano de fundo tão próximo do luxo dos palácios de Ipanema. No fórum das Mulheres do Mundo, ela foi solicitada a desenvolver o tema “Mortes violentas, lidar com a dor na vida cotidiana de uma mulher”. A intervenção que mais a comoveu foi a de Marinete da Silva, mãe da vereadora Marielle Franco, assassinada no dia 14 de março. Uma das questões levantadas no debate foi sobre a possiblidade da existência de uma política sistemática de assassinatos de jovens negros nas favelas. “Uma acusação grave”, pondera a escritora africana.
A partilha da escritora ruandesa não traz nenhum elemento novo em relação a vida da negritude brasileira, especialmente mulheres e juventude, nós mulheres e jovens sentimos diariamente a cruel rotina de violências e desrespeitos sob os quais somos submetidos. Porém, uma das violências muito comum no Brasil é o silenciamento das pautas da negritude, a invisibilidade de nossas dores e o esforço de tornar qualquer reivindicação das populações negras por direitos como simples mimimimi, neste contexto a fala de Mukasonga se faz muito importante, dá visibilidade para a violência que sofremos. Dá voz a desvalorização da vida negra e promove o debate das condições de vida dessas populações.
São as mulheres negras que de forma acentuada sente interseccionas em si as estruturas racistas, patriarcais, sexistas e heteronormativas, pois há uma questão de gênero fundamental nessa equação – a qual coloca as mulheres numa condição subalterna e passível de objetificação. Como o próprio levantamento do Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência (IVJ) 2017 aponta, os índices evidenciam a brutal desigualdade que atinge negros e negras até na hora da morte. E essa desigualdade é sentida de forma substancial pelas mulheres negras, uma vez que políticas reacionárias de criminalização do aborto, como a PEC 181 e o estatuto do nascituro, somadas ao descaso com as políticas já implementadas contra a violência doméstica, por exemplo, resultam numa conta cara e inacessível, que as mulheres negras infelizmente pagam com a vida.
Segundo os dados do Atlas da Violência 2018, apresentados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), enquanto entre as mulheres negras a taxa de homicídio ficou em 5,3 por grupo de 100 mil em 2016, entre as não negras, englobando brancas, amarelas e indígenas, a taxa foi de 3,1, uma diferença de 71%. “Nos últimos 10 anos a taxa de homicídios de mulheres não negras diminuiu 8% e no mesmo período a taxa de homicídio de mulheres negras aumentou 15%. Ou seja, é necessário que haja uma focalização das ações do Poder Público, no sentido de reverter esse cenário trágico que a gente pode ver a partir do Atlas”, destacou o pesquisador do FBSP David Marques.
É importante refletir sobre onde estão as mulheres negras hoje, mais importante ainda é refletir onde estiveram em toda a sua construção enquanto mulheres. As experiências acumuladas pelas mulheres negras, segundo Angela Davis, filósofa negra e feminista norteamericana, historicamente se basearam em seu papel enquanto trabalhadoras intermitentes, que labutaram sob o chicote de seus senhores, sendo estupradas, criando filhos que não eram seus e vendo os seus próprios serem vendidos como mercadorias. Essa força de sobrevivência, transmitida por gerações, carregam um legado duro de perseverança, autossuficiência tenacidade e resistência, um legado que Davis define como os parâmetros para uma nova condição da mulher. Ser mulher negra no Brasil, ainda segundo Davis, já é em si resistência.
Resistir é nossa essência!
Michele Corrêa
raduanda em Filosofia na UFPel,
Assessora da Pastoral da Juventude (PJ) e
Militante do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA)
Referências: